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A obra de um esteta
Um templo em ruínas, um acidente,
um nadador em apuros, uma conversa num parque, um homem à
procura, um caleidoscópio de momentos. São estas
as seis partes que compõem "Uma Cana de Pesca
para o meu Avô" - uma obra que prima pela beleza
da linguagem.
Por Diego Armés dos Santos
"Na obra de Gao Xingjian, a literatura
renasce da luta do indivíduo para sobreviver à
história das massas. Ele é um espectador céptico
e lúcido sem pretensões de poder explicar o
mundo. E acredita que só encontrou liberdade na escrita"
- podia ler-se no comunicado da Academia Sueca, aquando da
atribuição do Nobel da Literatura de 2000 ao
romancista, dramaturgo, ensaísta, tradutor, crítico
e pintor chinês, naturalizado francês. No entanto,
na China, Gao Xingjian continua a ser perseguido e considerado,
pelas autoridades e crítica literária do regime,
"um escritor menor que não sabe escrever".
"Um criador só é fiel às suas regras"
- responde o próprio Gao. E um escritor é, antes
de mais, um criador. Não é, portanto, um filósofo,
um político ou uma consciência moral. Não
representa um povo. O escritor é um indivíduo.
Um indivíduo diferente, porque é um construtor
de sonhos, um contador de histórias. E a estética
é fundamental para que a sua arte possa existir, para
que a sua criação faça sentido. As belas
histórias têm que ser contadas de uma forma bela.
Se partirmos deste ponto, fica facilitada a aproximação
à escrita de Gao - uma escrita que denota uma profunda
preocupação estética, fazendo uso de
uma linguagem despida, leve, em que as palavras se repetem,
flutuam e às vezes escapam, tanto por serem demasiado
concretas como pela razão contrária.
Diz o autor: "Preocupa-me a musicalidade,
procuro os efeitos que nascem da sonoridade da língua,
da repetição de certas palavras. (...) Se tivesse
que me definir, diria que sou um esteta". Mas trata-se,
contudo, de uma escrita que nos transporta à profundeza
dos detalhes, à importância do que nos rodeia,
ao peso da paisagem que nos envolve, à impossibilidade
da fuga à memória e à esperança.
À vida que, de tão real, se torna difícil
de imaginar, de conceber como um todo. E é então
que Gao desfaz "a vida" em fragmentos, passagens,
momentos. Em "Uma Cana de Pesca para o meu Avô",
por vezes, o autor observa e relata, sem mais. Absorve o ambiente
e despeja-o, entrega-o ao leitor, desfaz-se dele, deita-o
fora como se o não pudesse guardar. Sempre com delicada
mestria. Diz que as personagens existem, mas podemos duvidar
- serão miragens, fantasmas, figurantes? De outras
vezes, Gao mergulha nas histórias. Entra, vive, usa
e abusa, como se a história fosse a dele próprio.
Fala e pensa, não descreve apenas - veja-se o conto
que dá nome ao livro. Mas também não
comenta - Gao escreve, não interpreta, deixando espaço
para quem lê.
A missão do escritor é tocar
o real, aproximar-se dele tanto quanto possível, fazê-lo
surgir nas suas páginas. Há que trabalhar a
língua de maneira que esta seja capaz de fazer sentir
o que ele próprio sentiu. Não se trata tanto
de compreender como de sentir por que razão nunca chegamos
a compreender de verdade o que temos diante de nós",
explica Gao.
Em "Instantâneos", última
parte de "Uma Cana de Pesca para o meu Avô",
o autor parece evocar, de uma forma labiríntica e fabricando
um aguçado jogo de palavras, esta ideia da impossibilidade
da compreensão, enquanto uma personagem escreve o seguinte
texto ao computador: "Nada compreender a não ser
que não se compreende nada e compreender o que é
não compreender o que é compreender e o que
é não compreender (...) mais vale nada compreender
à partida e para quê querer compreender...?"
Por outro lado, este brilhante puzzle sobre a (in)compreensão
é ilustrativo da destreza linguística de Gao
e da beleza da sua escrita.
Seis contos
"Uma Cana de Pesca para o meu Avô" é
um conjunto de seis contos. No primeiro, "O Templo",
um casal recém-casado visita o Templo da Perfeita Benevolência.
É o homem do casal que nos conta a história:
a felicidade efémera do momento transparece pelo tom
nostálgico e angustiado com que a história é
narrada. Mas não pode dizer-se que exista uma explicação
concreta para tais angústias e nostalgias.
Segue-se "O Acidente", um relato
de um anónimo sobre anónimos: um pai e um filho
bebé numa bicicleta são abalroados por um autocarro.
O pai morre. O bebé sobrevive. A multidão acerca-se,
há quem discuta. O relato é cru, praticamente
despido de sentimentos. Apenas o momento, o ambiente, o vento,
os ruídos, palavras soltas.
No terceiro conto, "A Cãibra",
alguém conta como, um dia, um homem quase se afogava
enquanto nadava ao largo de uma praia, ao cair de uma noite.
Banhistas na areia, é certo que lá estavam.
Mas ninguém se apercebe da situação -
consequência da penumbra que se vai abatendo. A aflição
do nadador é a aflição de quem a descreve
e também a do leitor.
Segue-se "Num Parque", um conto vincadamente
teatral, construído quase na totalidade pelos diálogos
entre um homem e uma mulher - velhos conhecidos que se reencontram;
feridas (de amor?) que não sararam; o que mudou nas
suas vidas; a felicidade que nunca aparece; o reafastamento
inevitável.
"Uma Cana de Pesca para o meu Avô",
o conto seguinte, é uma viagem, numa fusão eu/tu
ambígua mas eficaz e envolvente, ao íntimo de
uma personagem à procura do que já não
existe, à descoberta do que ainda guarda na memória.
A fechar o livro, "Fragmentos". Não
será propriamente um conto, mas antes uma amálgama
de várias situações que se sucedem em
caleidoscópio, numa sequência aparentemente aleatória.
As paisagens são maiores que as histórias. "Só
a água do mar se espraia (...). Talvez não se
mova. É apenas uma impressão, uma sensação,
uma imagem que se pressente".
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