“Os Mensageiros Secundários”, de Clara
Pinto Correia

Este é um romance sobre as relações entre os homens e as mulheres, sobre a solidão, sobre Deus, sobre os fenómenos da fé. É também um romance em que nem sempre o que parece é

Por Isabel Coutinho

No prefácio a “Mensageiros Secundários”, Clara Pinto Correia conta que desde 1991 queria escrever um romance com este título. A ideia surgiulhe quando estava a fazer o pós-doutoramento na América, na Universidade de Massachusetts, e um dos seus colegas de clonagem lhe disse que ia apresentar uma comunicação no “Secondary Messengers Journal Club”. Quem não soubesse nada de biologia poderia pensar que Clara e o colega estavam a falar de “alguma seita esquisita, o Clube dos Mensageiros Secundários”. Afinal, na biologia, os mensageiros secundários são pequenas moléculas que recebem mensagens do exterior e as transformam numa linguagem que a célula entende. “‘Os Mensageiros Secundários’. Que título do caraças para um romance. Depois o título ficou muitos anos à espera de uma luz que o baptizasse.”

Em 1995, quando Clara Pinto Correia andava a fazer investigação para o seu estudo das teorias da reprodução, realizou, na biblioteca de livros antigos de Harvard, uma pesquisa com a palavra “monstros” (estes “podiam ir desde as crianças deformadas aos animais exóticos revelados pelos Descobrimentos, e se prolongavam sem compartimentos nem sobressaltos até aos dragões e aos basiliscos”). Encontrou 547 títulos. Foi-os peneirando a todos e, para o fim da lista, começaram a aparecer-lhe uns panfletos que estavam escritos em português — era português do século XVIII, que estava a ser usado para descrever visões de monstros. Aqueles eram folhetos anónimos, de dez páginas, vendidos na esquina da rua por dois centavos, com notícias de um estupendo monstro silvestre que apareceu em Jerusalém, de uma outra criatura vista e capturada na Anatólia...

Nesta literatura de cordel do século XVIII, os monstros tinham sempre um traço comum: eram mensageiros. “Há sempre um monstro que aparece quando alguma coisa de mal está para acontecer.” E assim nasceu o romance “Os Mensageiros Secundários”, que mistura ficção e verdade e serve para aprendermos algo de novo sobre histórias de monstros e sobre o terramoto que abalou Lisboa em 1775. “

Os monstros começaram a aparecer aos portugueses logo no início do século e, nos anos que se seguem, vão-se aproximando cada vez mais de Lisboa, até que entram na cidade antes do terramoto”. É a esta conclusão que chega Chuck, o narrador masculino de “Os Mensageiros Secundários” — um americano natural do Kansas, professor associado em Stanford —, ao analisar os panfletos. Mas, para os traduzir e entender bem, contrata Ana Maria Pereira da Silva, uma bióloga portuguesa. Por isso, “Os Mensageiros Secundários” é também um romance sobre as relações dos homens com as mulheres.

Além da história de Chuck e de Ana Maria, há ainda a história de Chuck e de Linette, a mãe dos seus filhos e com quem ele vive há 15 anos, e a história de Chuck e da sua amante Shyla. Pelo meio, intercalando cada capítulo narrado por Chuck, o leitor depara com as páginas de um diário de uma mulher misteriosa que se refugia numa povoação à beira de um lago e onde descreve os vários homens que lhe passaram pela vida.

Clara Pinto Correia quis mostrar que andamos todos distraídos. Não estamos atentos às mensagens. Podemos viver anos a fio com uma pessoa, trabalhar intensamente todos os dias com outra e, afinal, não as conhecemos. Este é um romance sobre como as pessoas não se conhecem umas às outras, mas é também um romance sobre a solidão, sobre Deus, sobre os fenómenos da fé, sobre as diferenças entre homens e mulheres e sobre a crença de que as mulheres são capazes de coisas estranhas que escapam ao controlo dos homens. É também um romance em que nem sempre o que parece é.


Nota: Quando o romance “Os Mensageiros Secundários” foi originalmente publicado na Relógio D’Água, em Junho de 2000, a autora optou por não traduzir uma série de citações de fontes francesas e inglesas relativas ao terramoto de 1775. Considerava esses textos “bons de mais para serem verdade” e, por isso, “tudo o que era intraduzível foi deixado na língua de origem”, o que tornava a obra incompreensível para quem não dominasse aquelas línguas. A versão do romance agora publicada na colecção Mil Folhas inclui a tradução desses mesmos textos, feita pela própria escritora.