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"Os Mensageiros Secundários"
A publicação do romance
“Os Mensageiros Secundários” hoje na colecção
Mil Folhas foi o pretexto para uma conversa com a bióloga
e escritora Clara Pinto Correia. Um romance escrito a várias
vozes, que mistura ficção e verdade e usa textos
dos folhetos de cordel do século XVIII
“QUIS CONTAR QUALQUER COISA DE
VERDADEIRO AOS LEITORES, ENSINAR-LHES ALGO QUE ELES NÃO
SOUBESSEM”
Por Isabel Coutinho
PÚBLICO — Como é que
lhe surgiu a ideia para este romance?
CLARA PINTO CORREIA — Andava há muito tempo com
a ideia de escrever um livro sobre como as pessoas não
se conhecem umas às outras. A ideia de uma mulher e
de um homem que vivem juntos há muitos anos, onde tudo
é perfeitamente consensual, mas no último momento
o leitor descobre, juntamente com um dos parceiros do casal,
que afinal aquelas duas pessoas eram perfeitas desconhecidas
uma para a outra.
É o caso das personagens principais
de “Os Mensageiros Secundários”: Chuck,
o professor universitário, e a sua mulher Lynette,
que abandonou a faculdade quando casou com ele.
O Chuck, sem a Lynette saber, é agorafóbico,
angustiadíssimo e cheio de problemas psicológicos.
Mas tenta manter a aparência de homem da classe média
absolutamente normal. A mulher, por sua vez, sonha que é
uma grande aventureira, quando na realidade é uma dona
de casa com um ar normal que toma conta dos filhos. Essa era
uma ideia que eu tinha há algum tempo.
Lembra-se de qual foi a fonte de inspiração?
Foi uma canção do Neil Young, do disco “The
Hardest Moon”, que se chama “Unknown Legend”.
A canção descreve a vida de uma dona de casa
e tem como refrão: “Somewhere on a desert highway/
She rides a Harley-Davidson/ Her long blonde hair flyin’
in the wind.” A parte que não é refrão
não tem nada a ver com isto: é a rotina de uma
dona de casa. Lembro-me de estar no laboratório na
América, a ouvir aquilo na rádio, e de começar
a pensar na quantidade de histórias que eu já
tinha ouvido e de experiências pelas quais tinha passado.
Aquela sensação estranha de se descobrir que
o marido, namorado, companheiro de há imensos anos
afinal tem um segredo espantoso: é uma pessoa completamente
diferente daquilo que se imaginava e do choque que habitualmente
isso é para as pessoas.
Escolheu para personagens principais um
casal da classe média norte-americana. Qual foi a razão?
À medida que a ideia do romance foi maturando, tornou-se
cada vez mais importante que fosse com pessoas da classe média,
sobre cuja vida se pensaria que não há absolutamente
nada a dizer e que aparentemente não têm qualquer
espécie de segredo. Aliás, como diz o Chuck
logo no início do livro, são iguais a milhares
de outras pessoas. Casaram-se uma com a outra tal como se
poderiam ter casado com milhares de outras pessoas. Quando
comecei a trabalhar a ideia, sabia que quem ia ter uma vida
de sonho, uma dupla vida como grande aventureira, era uma
mulher. O homem, em vez de ir viver para um sonho, eu queria
que estivesse a investigar uma coisa qualquer real que eu
na altura ainda não sabia o que haveria de ser.
É aí que lhe aparecem os panfletos
do século XVIII com as descrições das
visões dos monstros.
Queria que a história do homem me permitisse contar
qualquer coisa de verdadeiro aos leitores, ensinar-lhes algo
que eles não soubessem. Foi nessa altura que os panfletos
anónimos sobre o terramoto e os monstros me vieram
parar às mãos, completamente por acaso, na biblioteca
dos livros antigos de Harvard. Assim que os li, pensei: “Este
é o trabalho da personagem masculina.” Porque,
para as minhas idiossincrasias, para o que realmente me deixa
os olhos a brilhar, esta história é do melhor
que o há! Decidi: “Vou contar isto às
pessoas porque é uma história do caraças!”
A partir daí foi preciso ler os textos, reflectir e
fazer um enorme trabalho de campo para construir a figura
do Chuck porque ele é homem e eu não sou. Para
uma mulher construir o universo mental de um homem não
é fácil.
O retrato que faz da personagem masculina
é feroz. Ao mesmo tempo, este é um romance das
mulheres, não é daquele homem.
Sim, mas isso só se percebe no fim. Supostamente, o
romance é sobre o homem e sobre a relação
que ele vai ou não vai ter com a colega cientista portuguesa,
a Ana Maria. Só mesmo quando se chega à última
página é que se descobre que aquele romance
é sobre as mulheres. Isso era outro truque que eu queria
usar. Glosando o tema de como as pessoas não se conhecem
umas às outras, adicionar a ideia de como as pessoas
fazem geralmente leituras apressadas sobre o que vêem.
Eu queria induzir as pessoas em erro ao longo de todo o romance,
fazê-las pensar que estavam a ler um romance sobre uma
coisa e descobrirem no fim que não era nada assim.
Dar-lhes essa surpresa.
Que trabalho de campo fez para criar o Chuck?
A personagem do Chuck tem uma longa história, extremamente
engraçada. A personagem da Ana Maria é completamente
inventada. A única coisa que não é imaginada
é o ano em que ela nasceu.
1960.
Para mim, era mais fácil assim porque nasci nesse ano
e isso permitia-me contar a história da vida dela sabendo
exactamente o que se estava a passar em Portugal durante as
suas etapas de crescimento. Queria ter a certeza de que situava
bem no tempo as várias coisas que lhe tinham acontecido.
O resto é completamente inventado.
E o professor do Kansas?
O Chuck é uma personagem real. É um homem americano
que conheci muito bem. Entrevistei-o exaustivamente para construir
a personagem. Todas as histórias dele são verdadeiras,
tirando o facto de ser historiador de arte e estar a fazer
investigação naquela área. Mas até
o pormenor de ser do Kansas, o nome da cidadezinha onde cresceu,
o facto de o amigo ter comprado a cidade ao lado, o nome do
sítio onde ele foi ao liceu, tudo isso é inteiramente
verdade. Ele ter agorafobia; ter medo de passar numa curva
onde uma vez quase que bateu com um camião; dormir
com um revólver ao lado da cama; achar que estava à
noite a ouvir os passos do carrasco a subirem pela torre para
o irem torturar e depois voltarem-lhe a fazer aquilo na noite
seguinte é tudo verdade. Esse homem existe. A coisa
curiosa é que quando o livro foi comprado e começou
o processo de tradução para alemão, a
editora alemã estava muito preocupada porque achava
que a personagem do homem era demasiado fantasiosa. Considerava
impossível alguém ser assim tão complexo
e excessivamente anormal. Quando, para mim, a personagem anormal
do livro é a Ana Maria. É completamente extravagante,
desvia-se de todas as normas, até se perceber no fim
que aquela desgraçadinha é uma verdadeira mártir,
parece a pessoa mais arrogante e segura de si própria
deste mundo. É uma personagem impossível: uma
mulher bonita demais, elegante demais, inteligente demais,
engraçada demais, esperta demais, aquilo é tudo
demais. Para mim ela é que não podia existir.
Curiosamente, além da editora alemã, houve editores
americanos que fizeram o mesmo tipo de comentário e
quando o livro saiu cá também me perguntaram:
“Onde foste buscar aquela personagem?!” Chamoulhe
feroz, não foi?
Acho que fez dele um retrato feroz, sim.
Se conhecesse o senhor... é a criatura mais simpática,
mais querida, mais plácida e tranquila deste mundo.
Que também é a aparência que o Chuck dá
de si próprio da pele para fora... mas vivia lá
por dentro naquele inferno. Entretanto já se conseguiu
tratar e tanto quanto sei está bem. Quando comecei
a conversar a sério com ele, não imaginava a
complexidade que aquele homem tinha lá dentro. Os americanos
só se abrem depois de beberem muita cerveja. No dia
seguinte, notava pelos meus apontamentos que a minha letra
ia escorregando cada vez mais para o fim das páginas,
porque eu própria tinha de beber bastante para lhe
fazer companhia.
Porque é que queria que a sua personagem
fosse natural do Kansas?
As pessoas do Kansas têm um humor muito especial a que
acho piada. Queria enfiar lá a personagem porque também
é de lá que vem aquele casal do “Esplendor
na Relva”. O Kansas é um local muito utilizado
nos filmes americanos sobre a inquietação.
OS PANFLETOS E OS MENSAGEIROS
Porque é que deu ao romance o título
“Os Mensageiros Secundários”?
Por causa da ideia de existirem categorias de seres intermediários
que asseguram a comunicação entre Deus e os
homens. São personagens como os santos, os anjos ou
os monstros. Podem ser classificados como mensageiros secundários
porque são o escalão que está no meio.
Deus está lá em cima, é demasiado complexo
e a gente não consegue entender-se com ele. Estamos
cá em baixo, somos demasiado pequenos para conseguirmos
chegar até Deus. Precisamos de comunicar com Deus e
recorremos a seres intermédios que podem comunicar
connosco e com ele. Esses seres intermédios, na nossa
cultura, ou são os santos a quem a gente reza ou são
os anjos, que têm poderes especiais e que nos protegem,
ou durante muito tempo foram os monstros que Deus usava para
mandar avisos. A ideia de organizar esse tríptico e
de lhe chamar “mensageiros secundários”
foi minha.
Por analogia com a biologia.
Por analogia com um grupo de moléculas que existe na
biologia que têm a designação de “mensageiros
secundários”. Fazem a comunicação
entre a célula e o meio exterior à célula
e só há três grupos conhecidos: o cálcio,
o IP3 e o AMP cíclico. Todos os cientistas que estudam
mensageiros secundários pressentem que há mais
famílias de moléculas além das que nós
conhecemos. Para todas as funções que vemos
a célula executar, o mais provável é
que haja mais. Mas ainda não se conseguiu pôr
o dedo em mais nenhuma. Isto é a célula a tentar
entender-se com o que está à volta dela, que
é muito maior do que ela e que ela não pode
ver, portanto precisa de um intermediário entre o meio
exterior e ela. Os mensageiros secundários da biologia
fazem exactamente o que os mensageiros secundários
de Deus fazem. Deus é aqui entendido como uma coisa
genérica, é o que quer que seja que conhece
a lógica do universo a que pertencemos.
Voltando aos panfletos, a tese de que os
monstros vão aparecendo a anunciar a desgraça
em relação ao terramoto existe, há historiadores
que defendem isso ou é algo que imaginou?
Não imaginei. Aquela sequência está nos
panfletos.
Por exemplo, há uma parte do livro,
uma citação onde se lê: “Os monstros
começam a aparecer aos portugueses logo no início
do século, e nos anos que se seguem vão-se aproximando
cada vez mais de Lisboa, até que entram na cidade antes
do terramoto.”
Isso é a mensagem que o Chuck lê nos panfletos
quando os põe por ordem. A mensagem nunca foi descodificada
enquanto tal por nenhum historiador da ciência a não
ser por mim, que fui a única pessoa que trabalhou com
aquilo. Obviamente que não acredito em monstros, nem
acredito que os monstros sejam presságios mandados
por Deus. Agora, no século XVIII, as pessoas acreditavam
em monstros, viam monstros por toda a parte e acreditavam
que eles eram presságios mandados por Deus. E sequencialmente,
em termos cronológicos, em termos de geografia, eles
vão aparecendo muito ao longe no princípio do
século, vão-se aproximando cada vez mais de
Portugal à medida que os anos passam. O tempo vai entrando
em contagem decrescente para o terramoto e os monstros vão
vindo do Mar do Japão até ao Chile, até
à Anatólia, até à Flandres, vão
vindo cada vez de mais perto. E que o último de todos
da sequência de panfletos que eu encontrei em Harvard
nasce no Chiado em Abril de 1755 é verdade! É
uma espantosa coincidência, mas é uma daquelas
coincidências absolutamente deliciosas que não
se pode descobrir na literatura e deixá-la passar.
É demasiado bom.
Pode explicar melhor o que há de
ficção e o que há de verdade neste livro?
Tudo o que tem a ver com a literatura dos monstros é
verdade. Portanto, tudo o que está citado entre aspas
e que está a negro são extractos tirados dos
panfletos que consultei, sem qualquer espécie de alteração.
Isso não foi mexido nem manipulado. De vez em quando
saltei por cima de uns bocadinhos e estão lá
umas reticências. Não citei os panfletos todos
do princípio ao fim porque são compridos.
E escolheu estes textos porque...
Porque gostei muito deles e por estarem em português.
Foi a única literatura portuguesa sobre monstros do
período em que os monstros funcionavam como presságios
que eu encontrei em toda a pesquisa que fiz. E fiz muita.
Achei que era importante para os portugueses e para o público
estrangeiro saberem que havia literatura portuguesa sobre
o assunto. Achei assombrosa a coincidência entre os
aparecimentos dos monstros e a ocorrência do terramoto.
A literatura chamada pelos académicos “popular”
(prosa de cordel), a que é vendida nas esquinas das
ruas de autores anónimos, sempre me pareceu muito sedutora
porque tem uma margem de flexibilidade, de ingenuidade e de
simplicidade que é falsa, é enganadora. São
textos altamente sofisticados mas que parecem muito simples,
muito ingénuos a uma primeira leitura. Eu gosto muito
disso. Como gosto muito da literatura sobre monstros, para
mim foi muito comovente encontrá-la em português.
Aqueles panfletos desde a data em que foram para a biblioteca
de Harvard nunca tinham sido lidos. Só podiam ser lidos
por uma pessoa que conseguisse ler o português do século
XVIII. Não era trivial. A mim apeteceu-me muito partilhá-lo.
Chega mesmo a reproduzir algumas das ilustrações
desses monstros dos panfletos no seu livro.
Este género de narrativa, a que se chama “literatura
de cordel”, é um mundo cheio de jóias,
muito bonitas, muito comoventes, muito interessantes. É
um mundo onde há uma enorme margem de liberdade, percebe-se
que as pessoas se sentem completamente à vontade para
inventarem tudo e mais alguma coisa, para plagiarem tudo e
mais alguma coisa, copiarem de outros autores. As imagens
dos monstros que coloquei no livro aparecem noutros panfletos
de monstros de outros sítios, de outros países,
noutras línguas, por outros autores, de outras épocas.
As próprias imagens não são necessariamente
originais dos autores que escreveram aqueles panfletos. Mas
as pessoas usam-nas e reproduzem-nas com uma enorme liberdade.
Entretanto também aproveitou tudo
isto para falar de Deus. Queria reflectir sobre esse tema?
Quanto mais passa o tempo e menos espaço de reflexão
existe, mais importante é reflectirmos independentemente
de acreditarmos ou não. Pessoalmente gosto da ideia
de pensar que de alguma maneira, em algum sítio, isto
tem lógica e faz sentido. Nós é que não
percebemos como. Nem porquê. Somos pequenos demais,
estamos apenas a fazer um pequeno percurso da duração
de uma epopeia toda, portanto nunca haveremos de perceber
tudo. Gosto dessa ideia, de pensar nas mensagens que estão
ocultas, nas coisas que estão mesmo diante dos nossos
olhos mas a gente não vê.
Neste romance, intercala os capítulos
narrados por Chuck com outros em que o narrador é uma
mulher chamada Maria. Muito do que se lê nesse diário
tem a ver com a crença popular.
Os fenómenos da fé e a forma como ela se manifesta
sempre me interessaram. São outras das minhas fontes
de encantamento. Acho extremamente interessante o estudo das
diferentes maneiras como as pessoas se associam ou participam
na comunhão com o divino. Em todas as civilizações,
em todas as culturas, em todas as formas de estar no mundo,
há uma necessidade de nos sentirmos englobados por
qualquer coisa que é maior do que nós. Depois
há uma panóplia gigantesca de maneiras de cada
um de nós participar nesse fenómeno de relação
com o divino. O que a aventureira intrépida do meu
livro descobre à beira do lago é uma comunidade
que tem uma relação muito especial com o divino,
extremamente descontraída. Em que as coisas não
têm propriamente nome, nem definição,
assumem um número gigantesco de formas. Ela que, aparentemente,
parece que é especialista naquelas coisas não
sabe como lhes há-de chamar. Acaba por chamar às
imagens o nome de santos porque foi formada dentro da tradição
cristã. Mas nenhuma das pessoas que estão à
beira do lago lhe diz que eles são santos. Dizem que
são as pessoas do outro turno. E o que é o outro
turno? Também é uma coisa vaga. São as
pessoas que tomam conta disto enquanto a gente está
a dormir. E de vez em quando comunicam connosco nos sonhos,
mas a gente depois não se lembra do que é que
sonhou. Portanto trata-se de uma série de enigmas,
eles têm uma forma de comunicar com o divino que é
feita por charadas. Este foi o artifício que arranjei
para me pôr na pele do etnólogo que descobrisse
uma civilização diferente, com uma religião
diferente. Este é o primeiro encontro. Mensagens cifradas...
É o regresso à ideia de que a nossa vida inteira
está cheia de mensagens cifradas. Temos de aprender
a decifrá-las, mas é difícil porque precisamos
de ter um código que normalmente não temos.
Por isso temos de estar com muita atenção para
captar os pequenos sinais, os ruídos do mundo. Também
gosto muito da ideia das coisas que estão a acontecer
mesmo ao nosso lado e a gente não dá por elas.
Como na teoria do caos, daqui a muito tempo vão ter
um impacto fundamental sobre a nossa vida. No entanto, no
momento em que se desenrolaram, estávamos lá
e não demos por nada. Portanto toda a associação
com o religioso e a discussão da relação
com o divino também tem muito a ver com o decifrar
a charada, com o conseguir entrever pelo menos um bocadinho
de uma passagem do código. Até se chegar ao
fim da charada é preciso muito esforço, investimento,
atenção. Se há outra mensagem que tentei
transmitir no livro é a de que temos que estar com
muita atenção. Na vida que temos estamos demasiado
envolvidos pelo ruído de fundo para prestarmos atenção
ao que é realmente importante.
As personagens do seu livro vivem numa enorme
solidão.
Estão todas muito sozinhas. No fundo estamos muito
sozinhos. No romance ninguém regressa ao lugar de onde
partiu. Ninguém é quem parecia ser e ninguém
fica no sítio onde estava quando tudo começou.
A história também não é o que
parecia ser. Acontece um pouco como depois de um terramoto,
não fica pedra sobre pedra da ordem preestabelecida.
Está tudo fora de lugar.
O Chuck, depois de vários acontecimentos,
interroga-se sobre o que as mulheres podem fazer. “Estas
duas mulheres podiam mesmo fazer isto? As ‘mulheres’
podem fazer isto? E, se podem, há quanto tempo é
que andam a fazer isto, há quanto tempo, por favor,
alguém me responda, há quanto tempo é
que todas as mulheres do planeta andam a jogar este jogo umas
com as outras, enquanto todos os homens do planeta estão
a dormir os seus sonos sem sonhos, demasiado ocupados com
a urgência de governarem o mundo (...)?” Acha
que podem?
Se calhar podem. Às mulheres sempre se atribuíram,
desde a antiguidade clássica, poderes especiais quase
sempre demoníacos. Supunha-se, e é daí
que vem a ideia do sexto sentido, que a imaginação
das mulheres fosse um sentido tão poderoso como qualquer
um dos outros. E que, através da imaginação,
as mulheres fossem capazes de fazer as coisas mais incríveis
deste mundo, nomeadamente fazer nascer monstros. A menstruação
das mulheres sempre teve conotações absolutamente
horríveis: há textos do Plínio que depois
são glosados por todos os autores e mais algum que
dizem que o olhar de uma mulher menstruada pode matar qualquer
animal, incluindo o basilisco, que é aquele monstro
mitológico que tem uns olhos que matam tudo para onde
olha. Por isso há uma série de poderes mágicos
de magia negra, demoníaca, que estiveram até
ao século XVIII ligados às mulheres. Ainda permanece
algo desse legado cultural fortíssimo. Um vago pressentimento
de que as mulheres são capazes de coisas estranhas
que escapam ao controlo dos homens. A própria capacidade
que as mulheres têm de se entenderem a elas próprias
com um pequeno olhar, de dizerem uma série de coisas
umas às outras levantando uma sobrancelha, não
articulando uma única palavra, é algo que incomoda
os homens. E esse último pensamento do Chuck —
“Ai meu Deus será que elas andavam a comunicar
umas com as outras? Será que as mulheres podem fazer
isto e se podem há quanto tempo é que andam
a fazer isto?” — tem muito a ver com essa sensação
de que há poderes mágicos que são específicos
do feminino.
Quando releu agora o romance, achou
que poderia ter feito alguma coisa de maneira diferente?
Não. Gosto imenso deste romance, porque gosto dos temas
em que toca. Continua perfeitamente actual, não perdeu
nada com o tempo. A única coisa que senti ao relê-lo
é que em termos estritos da economia do romance, ou
seja, do romance funcionar bem para o leitor, talvez o Chuck
não devesse dizer palavrões. A sensação
que tenho é a de que os homens nos seus pensamentos
dizem muitos palavrões, isto pela investigação
que eu fiz falando com homens quando estava a preparar a personagem
do Chuck. E como a parte narrativa do Chuck é ele a
pensar, não está a falar com ninguém,
aparecem uns palavrões de vez em quando. Acho que isso
pode distrair as pessoas que estão a ler. Seria a única
coisa que eu mudaria.
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