"Os Indiferentes", de Alberto Moravia
Luís Miguel Queirós

Uma tragédia em forma de romance

Leo Merumeci, um homem de negócios de boa aparência e poucos escrúpulos, é amante de Mariagrazia, uma viúva burguesa que cultiva as aparências mas vive há muito acima das suas possibilidades. Merumeci está mais do que farto de Mariagrazia, mas, como pretende aproveitar-se do dinheiro que esta lhe deve para deitar a mão à propriedade da família, vai adiando a ruptura, enquanto seduz a sua filha, Carla. No dia em que comemora o seu 24º aniversário, a jovem dispõe-se a ceder, achando que qualquer mudança poderá atenuar, por pouco que seja, o sufocante tédio da sua vida presente. Michele, o irmão de Carla, percebe as intenções de Leo e tenta agir como se o odiasse, mas está demasiado consciente de que tudo o que o rodeia apenas lhe inspira uma patológica indiferença. A mesma que o leva a ir-se deixando enredar nos jogos de sedução de Lisa, "amiga" da mãe e ex-amante de Leo, pela qual não consegue sentir nem desejo nem repulsa.

Cinco personagens e todos os ingredientes de uma tragédia clássica. "Os Indiferentes", de Alberto Moravia, é justamente isso: o equivalente, em romance, de uma tragédia. Um reduzido elenco de protagonistas, um tempo de acção que mal excede as 48 horas, um cenário principal (a casa de Mariagrazia) e dois subsidiários (as casas de Leo e Lisa), e uma narrativa que quase exclusivamente se reduz aos diálogos e aos monólogos interiores das personagens.

De seu verdadeiro nome Alberto Pincherle, Moravia nasceu em Roma em 1907, numa família da classe média com razoáveis recursos. O pai era pintor e arquitecto. Aos nove anos, em 1916, contraiu tuberculose óssea, o que o obrigou a prolongados internamentos, até 1925, impedindo-o de frequentar a escola. Estudou em casa e em sanatórios, tornando-se um leitor obsessivo. Aos 13 anos escrevia poemas e tinha apenas 22 quando publicou "Os Indiferentes", revelando-se um dos mais espantosos casos de precocidade da literatura contemporânea.

Se Moravia foi muito criticado pela alegada cedência dos seus últimos romances a temas de êxito fácil, ninguém discute a qualidade dessa série inicial de romances, que vai deste "Os Indiferentes" até aos grandes frescos romanos dos anos 40 e 50: "La Romana", "Il Conformista" e "La Ciociara", todos eles adaptados ao cinema, respectivamente por Luigi Zampa, Bernardo Bertolucci e Vittorio De Sicca.

A versão cinematográfica mais conhecida de "Os Indiferentes" deve-se a Francesco Maselli, cujo filme de 1964 conta com Paulette Goddard, que interpreta Mariagrazia, e ainda com Claudia Cardinale (Carla), Rod Steiger (Leo) e Shelley Winters, no seu habitual papel de auto-iludida sedutora de meia-idade (é a mãe de Lolita, na adaptação de Kubrick do romance de Nabokov).

A ligação de Moravia ao cinema não se reduz, de resto, aos muitos livros seus que foram levados ao grande ecrã. Ele próprio escreveu argumentos e, durante muitos anos, assegurou na imprensa uma coluna de crítica de cinema.

A sua actividade como jornalista - foi correspondente de "La Stampa" e da "Gazetta del Popolo" - levou-o a viajar pelos quatro cantos do mundo e está na origem de livros como "Un Mese in URSS" (1958), "La Rivoluzione Culturale in Cina" (1968) ou "Passegiate Africane" (1987).

Se o romance "Os Indiferentes" não agradou ao regime, que viu nele, e decerto com razão, uma crítica ao modo como a burguesia italiana contemporizava com Mussolini, a ostensiva sátira ao governo fascista que constitui "La Mascherata" (1941) obrigou-o a viver na clandestinidade, nos arredores rurais de Roma, com a escritora Elsa Morante, também ela um nome incontornável da ficção italiana do século XX, com quem se casara nesse mesmo ano.

Romance existencialista "avant la lettre"

Considerado um romance existencialista "avant la lettre", antecipando o "L'Étranger" de Camus, o livro de estreia de Moravia centra-se nos três ou quatro temas que atravessarão boa parte da sua obra posterior: o tédio da existência, a impossibilidade de comunicação real entre os homens, a alienação social ou o sexo. Questões que também abordou em alguns livros de ensaios, especialmente em "L'Uomo Come Fine" (1963) e na sua autobiografia publicada em 1990, "La Vita de Moravia", co-redigida com Alain Elkann.

O cepticismo filosófico de Moravia afastou-o sempre da militância, mas envolveu-se ocasionalmente na política, tendo mesmo chegado a ser eleito deputado europeu, em 1984, como independente nas listas do Partido Comunista Italiano.

Ao longo de 60 anos, Moravia nunca deixou de ser uma figura de referência da cena literária italiana e, apesar do seu sucesso, tinha fama de ser um homem acessível, que ajudava escritores mais jovens e passava a vida a atender jornalistas que lhe pediam depoimentos a propósito de tudo e mais alguma coisa.

Tendo-se separado de Morante no início dos anos 60, casou-se com outra ficcionista, Dacia Mariani, e, finalmente, quando já era quase octogenário, desposou uma jornalista espanhola de 30 anos, Carmen Llera, dando pretexto a uma série de "cartoons" satíricos na imprensa italiana. Um deles, mostrando ambos tranquilamente sentados a ler, ficou célebre: Moravia lia "Os Indiferentes" e Carmen, claro, "La Noia" ("O Tédio").

Após a sua morte, em 1990, causou escândalo uma entrevista póstuma surgida no semanário "L'Espresso", a ponto de ter havido quem sugerisse que se tratava de uma invenção. Nela, Moravia não poupa sequer as ex-mulheres e os amigos íntimos, como fora Pasolini, de quem afirma ter sido "um decadente". Já Ignazio Silone "era mais um político do que um escritor", e Dacia Mariani, com quem esteve casado quase 20 anos, "não sabia pegar na caneta".