O que o tempo faz de nós

O drama do desaparecimento de uma criança de três anos é o ponto de partida para um notável romance de Ian McEwan, “A Criança no Tempo”. Um livro sobre a perda e de como o tempo actua em cada um de nós para a ultrapassarmos. Pensar o homem como resultado da memória, sem poder voltar atrás.

Por Rita Pimenta

Quem não teve já vontade de regressar a um ponto qualquer no passado e alterar um comportamento, uma observação, um gesto e assim evitar (supõe-se) o que aconteceu a seguir. Aquele segundo impensado em que se fecha a porta com a chave do outro lado ou o momento em que se altera o percurso de sempre para dar de caras com um imbecil a que não se pode fugir.

Stephen Lewis, o protagonista de “A Criança no Tempo”, martirizou-se neste jogo de imaginar como seria se não tivesse sido. Desgastou-se em pensamentos sobre o motivo por que resistira à sedução matinal de Julie e não voltara para debaixo dos lençóis. Não, não ficaria. Decidira ir com a filha Kate ao supermercado e por isso deixou a mulher na cama, sozinha. No regresso, também ele vinha sozinho. Perdera Kate, de três anos, e não podia voltar atrás no tempo.

É assim que se entra nesta obra de Ian McEwan. E não apetece sair. A relação de ambos não resiste à perda. Stephen continua as discussões inúteis sobre pedagogia no subcomité de Educação a que pertence e não consegue ter ideias para as suas obras literárias. Por ironia – ou mordacidade de McEwan –, o pai da miúda escreve livros infantis. Julie, que até então tocara violino num quarteto de cordas famoso, abandona a música e Stephen.

A partir daqui, o autor leva-nos a seguir o rumo do homem e raramente nos dá notícias de Julie, excepto quando aquele a visita no campo, passados mais de dois anos sobre o desaparecimento de Kate. Fazem amor.

Pelo caminho, o protagonista tem uma visão (alucinação, chamar-lhe-á) dos seus pais ainda jovens num “pub”. Decidiam o destino a dar à gravidez da mãe. O que fazer com ele, portanto. Aquela imagem persegue-o e tenta confirmá-la junto dos pais, dando-se conta de que existiam para além dele: “Só quando somos adultos, porventura quando nós próprios temos filhos, compreendemos inteiramente que os nossos pais tiveram uma existência cheia e complexa antes de nós nascermos”. Há-de voltar a passar por aquele “pub”, mas aí estará prestes a reconciliar-se com o mundo. E com Julie.

A crueza de McEwan acompanha toda a narrativa, mas é ímpar nas passagens relativas à educação das crianças: “Durante três séculos, gerações de peritos, sacerdotes, moralistas, cientistas sociais, médicos – na maioria homens – tinham debitado instruções e factos em constante mutação para benefício das mães (…) Lera afirmações solenes sobre a necessidade de ligar os membros de um bebé recém-nascido a uma tábua, para impedir o movimento e ferimentos auto-infligidos; os perigos da amamentação natural ou, noutro autor, a sua necessidade física e superioridade moral; como o afecto ou o estímulo corrompem uma criança pequena”.

O autor divaga nestas matérias e remata com os exemplos mais absurdos: “O trauma infligido à criança que vê os pais nus, a perturbação crónica alimentada por estranhas suspeitas se ela só os vê sempre vestidos; como dar vantagem ao nosso bebé de nove meses ensinando-lhe matemática”.

Ian McEwan é assim. Não persegue objectivos morais, reflecte tão-só sobre o mundo que habitamos e partilhamos. E não se consegue parar de ler.

O prémio de ficção atribuído a “A Criança no Tempo” (Whitbread 1987) foi merecido. Como os que se lhe seguiram por obras mais recentes: “Amesterdão” (Booker Prize 1998) e “Expiação” (National Book Critics Circle 2002).

O autor, que sempre admirou Kafka e se cansou de Freud, oferece-nos um final comovente e apaziguador sobre o que de mais belo a existência humana ainda pode ter.