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Miguel Torga
História de um andarilho alentejano
De pastor a traficante, foragido e criminoso.
“O Senhor Ventura”, novela de Miguel Torga, começa
no Alentejo e termina na longínqua China, ao ritmo
veloz e surpreendente da vida de um D. Quixote português.
Torga repudiou o livro durante muitos anos. Sentia-se embaraçado,
dizia. Mas a velhice fê-lo voltar atrás.
Por Maria José Oliveira
Breve tratado da odisseia de um português
com largos horizontes, “O Senhor Ventura”, de
Miguel Torga, retrata o trajecto de um homem que decide desviar-se
do destino de pastor e parte da sua aldeia natal, Penedono,
no Alentejo, rumo a Lisboa para cumprir o serviço militar.
Desavenças na noite da capital obrigam-no a ir para
Macau, mas no antigo território português a sua
vontade de evasão incendeia-se e, sem olhar a consequências,
deserta da tropa e embarca num navio de cabotagem que se dedica
ao tráfico de ópio no mar da China.
A ligeireza dos seus actos – mata um
funcionário da alfândega que pretende revistar
o barco –, o magnetismo de outras paragens e a fúria
intensiva de viver levamno a ancorar em Pequim. É aqui
que conhece Pereira, um pacato minhoto que embarca com ele
nas mais surpreendentes aventuras. Tornam-se sócios
numa casa de pasto, encarregam-se da quase impraticável
tarefa de transportar 200 camiões para a Mongólia,
raptam um milionário, dedicamse ao fabrico de armamento
e, num assalto ao arsenal por soldados rebeldes, Pereira,
o do Minho, é morto.
A tenacidade do Senhor Ventura é posta
à prova: enterra o amigo e regressa a Pequim. Casa
com uma russa, Tatiana, adepta da vida nocturna e cliente
assídua de bares pouco recomendáveis, nasce-
lhes um filho, Sérgio, e, ainda sequioso de experiências,
entra no tráfico de heroína.
Foragido, contrabandista, traficante e assassino,
o Senhor Ventura é finalmente repatriado. O regresso
a Penedono, sem Tatiana e Sérgio, prolonga-se por cinco
anos. Até o filho ser enviado para Portugal e nascer
a revolta e a sede de se vingar de uma mulher que, fica a
saber, o trai com Pequim inteira. O desejo de liberdade chama-o
novamente e, animado pela ideia de vingança, volta
a partir para a China. Percorre léguas e léguas,
dorme em abrigos, viaja escondido nos comboios, partilha com
os pobres uma sopa misericordiosa. Mas não descobre
a mulher.
A sede, a fome e as febres vencem o seu arcaboiço
e o Senhor Ventura cede a um cancro que há muito dormitava
no seu fígado. Aquele que sorvera a vida às
mãos-cheias é derrotado numa cama de hospital,
algures na China, e a sua tragicidade revela-se ainda maior
com o destino do seu filho: à guarda de camponeses
de Penedono, Sérgio começa a olhar pelas ovelhas
na planície alentejana. “Pastor, que foi por
onde o Senhor Ventura começou”.
A ternura dos 80
Para um escritor que elegeu Trásos- Montes como a sua
pátria literária, a escolha do Alentejo para
berço do herói de “O Senhor Ventura”
(1943) poderá causar alguma estranheza. Contudo, Torga
não se detém muito sobre as paisagens alentejanas,
preferindo divagações sobre a China, que visitou
já perto dos 80 anos. Há, no entanto, referências
à planície alentejana. Que complementam o cariz
trágico da personagem e que apontam para traços
dominantes na obra de Torga, nomeadamente a paisagem nua,
árida e agreste que o escritor reproduz na sua poesia
e personagens.
É a resistência quase inabalável
dessa paisagem que emerge no herói de “O Senhor
Ventura”, novela remetida ao silêncio depois de
1943 e recuperada pelo escritor mais de quatro décadas
depois, em 1985. Torga sabia que a narrativa distanciava-se
do seu universo bibliográfico. Escrevera-a sob um ímpeto
juvenil, admitiu mais tarde, libertando o espartilho da imaginação.
A fantasia, porém, haveria de dar lugar ao embaraço.
A releitura e o confronto com a espontaneidade
viril dos 30 anos levou-o a repudiar o livro. Durante muitos
anos foi editor das suas obras. Por isso, nada o impedia de
lançar para a sombra uma ficção nascida
do “atrevimento”. No “Diário XII”
escreve: “Não há uniformidade de critério
possível perante a surpreendente e paradoxal diversidade
da vida”. Poder-se-á associar o pensamento ao
trajecto errante do herói de “O Senhor Ventura”,
mas a frase justifica também a rendição
de Torga à ousadia do livro. Já perto dos 80
anos, o escritor-médico relê a aventura e, compreensivo,
descobre com ternura a história de um andarilho português
por terras do Oriente.
Decide-se por uma 2.ª edição,
em 1985, mas não deixa de esclarecer e justificar o
“devaneio” dos seus 36 anos no prefácio.
“No presente, é mais que certo que não
conceberia a narrativa tão linear e apressada. Procuraria
ao menos que fosse mais entrosada psicologicamente, mais lógica,
menos sumária e arbitrária”, escreve.
Porém, admite, tal “presunção”
teria também o seu preço: “Talvez que
assim não conseguisse tão espontânea e
liberalmente dar largas à imaginação.
Que, valha a verdade, é a única ponta por onde
se lhe pode pegar”. Torga apresenta “O Senhor
Ventura” como uma obra com contornos pontuais, distante
do apego à terra e das exaltações telúricas
de narrativas anteriores, “A Criação do
Mundo - Quatro Dias” (1937-1939), “Bichos”
(1940) e “Contos da Montanha” (1941). Numa escrita
transparente, “O Senhor Ventura” revela um outro
Miguel Torga. Mais ousado e fantasista.
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