Jack Kerouac
Para onde vais, América?

Wyoming. Texas. Colorado. Kansas. Montana. Iowa. Califórnia. “Pela Estrada Fora”, romance que afirmou Jack Kerouac como fundador da “beat generation”, ecoa nas profundezas do sonho americano. Um hino à aventura e à liberdade.

Por Raquel Ribeiro

Como seria a vida pintada por Jack Kerouac? Bombas de gasolina a perder de vista. A imensidão do deserto, o vento embalando os campos de algodão. O pôr do Sol vermelho atrás das montanhas, o nevoeiro espesso da metrópole, os arranha-céus de Nova Iorque. Seria como “Pela Estrada Fora”, a vida nas pinceladas dessa América desencantada do pós-guerra.

Na vida pintada por Kerouac, ouve-se jazz tocado às escondidas nos bares das cidades suburbanas, bebe-se cerveja que jorra dos barris, mexicanos tocam banjo para as mulheres dançarem, com os seus vestidos floridos.

Nessa vida pela estrada, parte-se rumo ao desconhecido, como Sal Paradise, Dean Moriarty, Old Bull Lee, Marylou, Carlo Marx ou Camille — os personagens de “Pela Estrada Fora”, o “road book” de Kerouac. De mochila às costas, com poucos dólares no bolso, pedindo boleia, alugando carros.

Com uma prosa espontânea, livre, rítmica, como o jazz que Kerouac tanto amava, “Pela Estrada Fora” narra as deambulações de dois amigos, Sal e Dean (que, na realidade, são Kerouac e Neal Cassady), à deriva no continente americano.

Sal, o escritor, não se cansa de desenhar as paisagens da América e do México: poços de petróleo na linha do horizonte, águas barrentas do Mississippi, casas com jardim, beatas corroendo o chão de estações de comboio; sentir “o odor devasso de uma grande cidade”, ver São Francisco brilhando como jóias na escuridão da noite. “As únicas pessoas autênticas, para mim, são as loucas, as que estão loucas por viver, loucas por falar, loucas por serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que não bocejam, mas ardem, ardem, ardem como fabulosas grinaldas amarelas de fogo-de-artifício a explodir”, escreve Kerouac no romance. Uma justificação para a aventura, o desvario.

“Pela Estrada Fora” é o segundo romance de Kerouac. O autor terminou-o em 1951, mas foram precisos seis anos até ser publicado. A obra — um parágrafo único, sem pontuação, dactilografado num rolo de papel de 36 metros de comprimento uF8E7 foi rejeitada por dezenas de editoras. Kerouac foi forçado a reescrever tudo, pontuando e rasurando toda a obra inicial, escrita em apenas três semanas, com uma dose excessiva de cafés e anfetaminas, que o deixaram acordado durante vários dias.

Em 1957, o romance foi aceite pela editora Viking, mas Kerouac teve ainda de mudar o nome dos seus personagens: Neal Cassady transformouse em Dean Moriarty, Allen Ginsberg em Carlo Marx, William Burroughs em Old Bull Lee, e o próprio Kerouac em Sal Paradise.

O poeta Allen Ginsberg disse, em 1958, que o manuscrito de “Pela Estrada Fora” era “um único e magnífico parágrafo, de vários quarteirões, rodando, como a estrada em si”.

Da geração “beat” ao desencanto dos anos 60
“Pela Estrada Fora” é considerado, com “Uivo”, de Ginsberg, e “O Festim Nu”, de Burroughs, o romance fundador do movimento “beat”. Era um mundo novo, aquele que se abria diante dos olhos da juventude americana.

Quando o romance saiu, Einsenhower era Presidente dos Estados Unidos. A América do pós-guerra acreditava que uma nova harmonia era possível, mas vivia-se com medo do mundo vermelho atrás da cortina de ferro. A juventude já não se revia nos mesmos valores, era preciso partir os grilhões, derrubar a ordem, procurar a liberdade.

Por isso, Kerouac, Ginsberg, Cassady e Burroughs, como milhares de jovens americanos, cansados da vida das metrópoles, fizeram-se à estrada, boémios aventureiros de uma América que eles acreditavam ainda existir.

“Beat”, em inglês, usado como adjectivo, significa “vencido, desiludido, exausto”. A geração “beat” de que Kerouac e o seu grupo são os fundadores rapidamente adoptou o termo para definir os “beatniks”, traduzido por “alienado da sociedade”.

A década de 60 poderia ter sido a de Kerouac. Os jovens sabiam que ele estava do seu lado. Mas Kerouac, cada vez mais desiludido com o rumo que a geração tomava, afastou-se dos jovens do “flower power”. “Isso é política, não é mais arte”, lamentou. As relações entre os quatro membros do grupo também se deterioraram. Ginsberg cedo abraçou a fama e as causas da juventude. Kerouac foi contestado por se mostrar a favor da guerra no Vietname. Afastou-se do movimento e mudou-se para a Florida, com a sua mãe.

Mas Kerouac não esqueceu os amigos que o acompanharam sempre, porque foi com eles que partiu para a estrada. “Perdoei toda a gente, desisti, embebedei-me”, escreve, no romance. Morreu em 1969, aos 47 anos, vítima de uma hemorragia provocada pelo excesso de álcool, excesso de vida, excesso de velocidade. A páginas tantas, em “Pela Estrada Fora”, Carlo Marx pergunta: “Para onde ides vós, América, no vosso automóvel a cintilar pela noite fora?” Mas Kerouac não soube dar a resposta. No fundo, ninguém soube.