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José Cardoso Pires
Valsa de conspiradores,
entre a solidão e o medo
Por Sofia Lorena
Este é um retrato de
um tempo através do relato da investigação
de um assassínio. “Balada da Praia dos Cães”
conta a história de um crime político, cujo
motivo não foi eleito por José Cardoso Pires
como força maior da construção da trama.
Interessa antes ao escritor a balada dos conspiradores, a
valsa de mentiras e verdade
De “Balada da Praia dos
Cães” José Cardoso Pires dizia ter retirado
a experiência única de inventar a realidade e
de ver em carne e osso aqueles que no papel transformara em
outros. Por um lado, conhecer os que lhe deram matéria
de escrita; por outro, descobrir que mergulhara de tal forma
no universo em causa que inventara pormenores que correspondiam
em rigor à realidade.
A “Balada”, editado
em 1982, é a história da investigação
do crime da praia do Mastro, que em 1960 dera origem a manchetes
de jornais e animara conversas de café. Um ano depois
Cardoso Pires recebeu um relato escrito, matéria que
podia desde logo ter transformado em romance. Esperou 20 anos
para começar a trabalhar no que seria um dos seus maiores
sucessos, quis fazê-lo em liberdade. O crime em questão
é de esquerda, podia ter sido contado logo, mas ele
só o quis fazer quando pudesse, se assim o entendesse,
contar um que fosse de direita.
Romance, policial, narrativa
em que todos são narradores, dividida entre “A
Investigação” e “A Reconstituição”.
Para começar, o princípio, o fim imediato de
todos os assassínios, a descoberta do corpo, no caso,
a descrição pormenorizada do “cadáver
de um desconhecido”, a que em breve daremos nome e história
de vida. Do corpo viajamos para o mundo de Elias Santana,
o chefe Covas de quem acompanharemos de obscenamente perto
o trabalho de investigador compulsivo. Desde que ele percebe
que, desta vez, o De Cujus, como sempre chama aos cadáveres
que lhe são confiados, traz em si “um coice de
morto”, sangue político, tipo S, Subversivo.
Segui-lo-emos nas suas diligências,
diurnas ou tardias, nas alturas que se diz de si mesmo que
“anda aos calados”. Observá-lo-emos entre
interrogatórios, consultas ao Livro dos Mortos. Quando
pára e treslê, que “no tresler é
que está a leitura […] com a preciosa ajuda do
mindinho, a unha que escuta.” Ou quando regressa à
sua casa com vista para o Tejo onde tem por única companhia
o lagarto Lizardo (há também os ratos, mas esses
não lhe se dão a ver).
Começamos e acabamos
com Covas. O polícia que “ao fim de muitos anos
de traquejar com cadáveres malditos” conclui
que “o que mata não faz mais que se suicidar
nessa morte”. Também aqui, em que o crime é
o de uma conspiração nascida num ambiente suficientemente
conspirativo para poder dar-se o caso de todos conspirarem
contra todos durante todo o tempo.
Três suspeitos, nenhum
motivo
Sublinhado pelos críticos ao discorrerem sobre
esta balada foi sempre o facto de este crime não ter
um motivo, ou melhor, de o autor não eleger esse móbil
como força maior da construção da trama.
No fundo, todos os co-criminosos têm todos e, ao mesmo
tempo, nenhuns motivos para o crime que decidem cometer. Estão
todos no tal estado de pré-suicídio que Covas
bem sabe ser bom como motivação para matar.
E são três os
nossos suspeitos. Dois que com o assassinado, Luís
Dantas Castro, se tinham evadido do Forte de Elvas, onde estavam
presos por “sedição militar”. Ambos
num volkswagen conduzido pelo terceiro, Mena. Um arquitecto,
Renato Manuel Fontenova Sarmento, 25 anos. O 1º cabo
Bernardino Barroca, 23 anos (“ele só acreditava
nos soldados e foi um soldado que o matou […]. É
o soldado que mata o pai dos soldados, daí a grande
traição.”), Filomena, ou Mena, como lhe
chamaremos mais tarde (primeiro é só um rosto,
depois meio corpo, seios nus à janela, cabelos negros,
depois um corpo sumptuoso, cada coisa no seu lugar).
Mena? O arquitecto? O cabo?
“O assassino do major é da PIDE”? “A
quem interessava prolongar a morte do major”?
Pois é Elias, é
chato, mas o que é que tu queres? “O molho é
político, é matéria com animus conspirandi
[…] como você muito bem sabe aí a palavra
é da PIDE […] animus conspirandi ou ânus
conspirandi, mais cu, menos cu”.
O assassino é o medo
O caso arrasta-se. Elias procura talvez outras luzes e
reverberações, já depois da confissão.
O que procura? Perceber Mena, quem sabe. (Assim a vê:
“oca, é o termo. De certo modo, morta.”).
Pistas, há sempre pistas. Tão certo quanto a
sombra ser “o castigo do vivente”, mesmo que se
trate de um cão. “A investigação”
e os pedaços de relatórios que a salpicam, fugas,
inscrições manuscritas, baladas de desertores,
declarações de testemunhas e documentos diversos.
Relato que impressiona por
se alimentar daqueles que experimentaram a forma dramática
de solidão que é o medo. E que ficaram para
contar ou dar a contar como o medo tem uma lógica que
aliena de valores até um ponto em que se torna assassino.
Cardoso Pires e o retrato
de um tempo, o da Lisboa de Salazar, praga sedentária
que se alastrava a todo o país. Lisboa, num tempo em
que Lisboa era também “um animal sedentário”,
“uma cidade contornada por um sibilar de antenas e por
uma auréola de fotografias de malditos com o Mestre
Pátria a presidir.” “Esse tempo foi o do
fascismo ordinário, quotidiano, que ele descreveu ou
alegorizou como ninguém”, como sintetizou Eduardo
Lourenço (“Branca Eternidade”, PÚBLICO,
27-10-1998).
“Balada da Praia dos
Cães” é disso prova. Balada de conspiradores.
Valsa de mentiras e verdades. Um corpo desconhecido. Três
suspeitos. Algumas personagens que ficam para a história
das personagens. Mena, Covas e até o lagarto Lizardo,
vidas, corpos, mundos. Algures entre a realidade e a ficção
“numa verdade e numa dúvida que não são
pura coincidência”.
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