O nascimento de um Império
Por João Carlos Silva

Ser ou não ser um Império é o dilema dos Estados Unidos quando o século XIX se fecha e o XX se abre. Gore Vidal leva-nos pelos meandros do poder norte-americano no momento em que é dada a resposta à questão. Ou de como um romance pode ser mais didáctico do que um livro de História.

O ano de mil e novecentos aproxima-se. Os Estados Unidos e a Espanha estão em guerra por Cuba, o coração das Caraíbas. O coronel Theodore Roosevelt expulsa os espanhóis de Havana. Mais longe, nas Filipinas, outro norte-americano, o almirante Dewey, derrota a Armada espanhola do Pacífico e ocupa Manila. Podiam ser apenas dois episódios bélicos e acabaram por ser o despontar do Império Americano.

“Império”, escrito em 1987 por Gore Vidal, transporta-nos à provinciana Washington D.C. da viragem de século, onde as boas famílias que tradicionalmente tinham em simultâneo a riqueza e o poder vão cedendo uma e outro a uma geração de novos ricos ambiciosos para quem importam apenas duas coisas: vencer sempre e conquistar tudo.

Este livro é uma espécie de “dois em um”: um romance mais um livro de história, onde duas personagens fictícias — os meio-irmãos Caroline e Blaise Sanford, de boa família mas fascinados pela energia e carisma dos recém-chegados ao círculo do poder — se cruzam com os Presidentes McKinley e Roosevelt, estadistas como John Adams ou John Hay, os Vanderbilts ou os Astors da alta sociedade, o magnata da imprensa William Randolph Hearst, os circuitos de corrupção e favores políticos dos partidos Republicano e Democrático.

É um épico de centenas de páginas, cheio de pormenores prodigiosos como convém a uma época de promessas manchada precisamente pela contaminação do dinheiro e de uma imprensa amarela com a força suficiente para conduzir um país para a guerra.

“Império” faz parte de um conjunto de obras de Gore Vidal geralmente designadas como “Crónicas Americanas”. Foi precedido por “Washington D.C.”, “Burr”, “Lincoln” e “1876” e ‘completado’ por “Hollywood” e “A Idade de Ouro”, mas é provavelmente o melhor de todos eles enquanto romance. Para isso muito contribui a personagem de Caroline Sanford, uma das melhores mulheres imaginadas pelo autor. É com ela que o livro abre, no Verão de 1896, em Inglaterra, aos 20 anos, órfã, à espera de uma decisão do tribunal sobre a divisão da fortuna paterna com o meio-irmão Blaise.
Às jovens de sociedade, nessa altura, estava reservada a gaiola dourada do casamento, mas Caroline escolhe outro caminho, o de competir com os homens — e homens com poder, como o senhor Hearst. É através do duelo entre Caroline, Hearst e Blaise, o meio-irmão que é um protegido do magnata, que assistimos ao nascimento do império. Um nascimento que pressagiava o pior.

Vidal é um chato
Gore Vidal considera William Appleman Williams o maior historiador da América. E Williams retribuiu-lhe quando, ao fazer uma crítica às “Crónicas Americanas”, observou que o autor aborda questões que outros romancistas e historiadores “têm relutância” em fazer. “Ele (Vidal) sempre nos chateou porque nunca nos permitirá fugir às questões.” É isso: Vidal é um chato. Persegue o sistema. Diz coisas incómodas, mesmo quando escreve estes romances históricos quase como se observasse os Estados Unidos simultaneamente com um telescópio e um microscópio. Quando se vêem as coisas com este pormenor, com esta ironia, com este humor, com este cinismo, é-se forçosamente incómodo.

Vidal continua hoje a ser um tipo "chato", que vive mais de metade do ano na sua “villa” em Itália, passa uns tempos em Los Angeles, prefere o “Guardian”, o “Le Monde”, jornais italianos e “The Economist” — “porque o capitalismo mente sobre tudo menos sobre o seu dinheiro” — e, sempre que pode, vai lançando as suas setas ao Império, ao que nasceu por volta de 1900 e hoje domina o planeta.

É um senhor de quase 80 anos que continua a insistir na faceta de provocador, o homem que pensa que os Estados Unidos não têm razão para se interrogarem por que foram atacados no 11 de Setembro, sabendo-se que depois da II Guerra Mundial já fizeram em todo o mundo mais de 200 acções militares e que uma lei da natureza é a de que não há acção sem reacção... O homem que pensa que os Estados Unidos não foram ao Afeganistão por causa de Osama bin Laden mas por causa do petróleo... O homem que pensa que George W. Bush é uma criação “da gente do petróleo”, que o colocou na Presidência... O homem que defende que os militares norte-americanos devem fazer as malas e sair de todos os lugares do mundo em que se encontram. Enfim, que os Estados Unidos regressem às suas raízes republicanas, que deixem de interferir nos assuntos das outras nações e também nas vidas privadas dos seus próprios cidadãos. Que enterrem este império cujo nascimento ele nos mostra.