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Michael Cunningham
A hora em que a vida se abre
Por Alexandra Lucas Coelho
Três vidas que se abrem num único
dia de Junho. Nova Iorque no fim do século XX, um subúrbio
de Londres em 1923, Los Angeles em 1949. São as narrativas
alternadas de "As Horas", o romance que Michael
Cunningham escreveu a partir de Virginia Woolf. Um "best-seller"
que ganhou o Pulitzer.
Paramos num passeio à espera de poder
atravessar uma rua. Ou estamos a tentar fazer um bolo perfeito.
Ou, como Proust, molhamos uma madalena no chá e levamo-la
à boca. Algo acontece. Algo se abre. A nossa vida abre-se
e nós vêmo-la. "As Horas", o romance
com que o americano Michael Cunningham ganhou o Pulitzer e
mais meia dúzia de prémios em 1999, é
sobre isso. A hora em que a vida se abre. Pode ser o fim,
pode ser o começo, quase sempre é nada —
a vida fecha-se, atravessamos a estrada, acabamos o bolo,
passamos a outra hora.
"Vivemos as nossas vidas, fazemos seja
o que for que fazemos e depois dormimos: é tão
simples e tão normal como isso. Alguns atiram-se de
janelas ou afogam-se, ou tomam comprimidos; um número
maior morre por acidente, e a maioria, a imensa maioria é
lentamente devorada por alguma doença ou, com muita
sorte, pelo próprio tempo. Há apenas uma consolação:
uma hora aqui ou ali em que as nossas vidas parecem, contra
todas as probabilidades e expectativas, abrir-se de repente
e dar-nos tudo quanto imaginámos, embora todos, excepto
as crianças (e talvez até elas), saibamos que
a estas horas se seguirão inevitavelmente outras, muito
mais negras e difíceis. Mesmo assim, adoramos a cidade,
a manhã, mesmo assim desejamos, acima de tudo, mais."
Podemos ler este longo parágrafo —
que aparece quase no fim — como uma espécie de
síntese das três vidas que se abrem no livro,
num único dia de Junho, em três tempos e espaços
diferentes. Nova Iorque no fim do século XX, um subúrbio
de Londres em 1923, Los Angeles em 1949. As narrativas vão
alternando e a cada corresponde uma mulher.
O fio que as liga é "Mrs. Dalloway",
a obra de Virginia Woolf a partir da qual Michael Cunningham
construiu "As Horas".
A origem
Virginia Woolf começou a pensar no livro que viria
a ser "Mrs. Dalloway" em 1922, quando recuperava
de um colapso nervoso na Hogarth House, a casa dos Woolf nos
arredores de Londres. Os amigos trazem-lhe os brilhos e o
"buzz" da capital. Virginia lê "Terra
Devastada" de Eliot, que acabava de ser publicado, e
o "Tempo Perdido" de Proust, numa exaltação
maravilhada.
O primeiro título que lhe ocorre
para esse romance-por-ser é "As Horas". No
Verão seguinte anota no seu diário: “Quero
dar a vida & a morte; a sanidade e a demência; Quero
criticar o sistema social, & exibi-lo em movimento, na
sua forma mais intensa…”
Acabou por chamar-lhe "Mrs. Dalloway".
Toda a acção decorre num dia, em Londres, nos
anos 20 (com "flashbacks" para os demónios
das várias personagens). É um dia de festa em
casa de Clarissa Dalloway, mulher de um desinteressante membro
da câmara dos Comuns. Ela sai para comprar flores. E
algo se abre nela enquanto a cidade flui. Clarões.
Uma rapariga vital. Um homem com quem podia ter partido (ou
ficado). Um beijo. O que foi o que é.
Em "As Horas" de Michael Cunnigham,
Clarissa vive em Manhattan, no fim do século XX, com
a namorada e a filha adolescente — que usa ténis
de plataforma, "piercings" e o cabelo rapado. Chelsea
e a Village estão cheias de histórias de amor
e perda entre homens novos perfeitamente musculados que passam
as noites a dançar "house". Clarissa sai
para comprar flores. Vai dar uma festa de homenagem ao amigo
poeta Richard, que lhe chama Mrs. Dalloway. Algo se abre.
Clarões. Um beijo, lá muito atrás.
No capítulo seguinte estamos
nos arredores de Londres em 1923. Virginia Woolf está
a escrever "Mrs. Dalloway".
A terceira narrativa é a de Laura
Brown, uma jovem dona de casa na Los Angeles do pós-II
Guerra que lê na cama, de manhã, "Mrs. Dalloway".
Levanta-se. É um dia de festa. O aniversário
do marido Dan. Ela vai tentar fazer um bolo perfeito para
o marido perfeito. Tem consigo Richie, o seu filho pequeno
(está à espera de outro). O bolo não
fica como ela quer. Há um beijo. Qualquer coisa aberta.
O bolo não fica perfeito. Ela sai para a cidade, aluga
um quarto de hotel como se fosse para se deitar com um amante
e lê "Mrs. Dalloway".
Nas entrevistas que deu a propósito
de "As Horas" Michael Cunningham contava que Laura
Brown fora inspirada na sua própria mãe, uma
mulher insatisfeita com a vida que tinha mas que não
teve coragem de a abandonar. Talvez por isso, talvez por ser
a única personagem que não tem um contraponto
no universo de Virginia Woolf, Laura Brown é a figura
mais perturbante de "As Horas". O sufoco, a claustrofobia
na cozinha e o salto clandestino para o aluguer do quarto
(um espaço em branco só dela, uma hora aberta)
permanecem entre os momentos mais fulgurantes do livro.
"Toda a gente neste livro está a tentar criar
algo impossível, maior do que eles próprios",
diz Cunningham. "Cada um é, de algum modo, um
visionário, e, assim, é assombrado por demónios
semelhantes, os das limitações humanas, os da
discrepância entre o que conseguimos imaginar e o que
conseguimos realmente criar."
Nessa hora em que algo se abre há quem não passe
para a hora seguinte. Aconteceu com Virginia Woolf em 1941.
Michael Cunningham escolheu fazer desse momento não
o fim mas o prólogo do seu livro.
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