Colecção
Mil Folhas
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Porquê uma colecção de
livros?
José Manuel Fernandes
Numa notável crónica editada
este domingo no PÚBLICO, Ana Sá Lopes explicava
para que serve um jornal. Como é útil para
limpar o balcão de vidro de uma pastelaria, por exemplo.
Ou para embrulhar a panela do arroz para que este fique
solto, como se pretende.
Claro que há muitas outras utilidades que ela não
referiu - e pelo menos tão importantes. Forrar o
caixote do lixo. Ou embrulhar o peixe, num velho mercado.
Ou aconchegar os copos de vidro numa mudança. Ou...
por aí adiante.
Uma das coisas que devia fazer a humildade que quem escreve
nos jornais é perceber como a sua escrita é
efémera, como ao fim de umas horas já há
outro jornal para ler, como daqui por uns anos quem quiser
saber o que escrevemos terá de mergulhar nos volumes,
de páginas amareladas e a desfazer-se, de uma qualquer
hemeroteca (estou a esquecer-me dos novos arquivos electrónicos,
mas é de propósito: é que não
vem a propósito do que vos quero dizer) ou nas prateleiras
empoeiradas de um arquivo.
Por isso sempre tive a noção de que um livro
é outra coisa - mesmo esses livros fáceis
que reúnem crónicas de jornais. Um livro guarda-se
numa estante, pousa-se na mesinha de cabeceira, lê-se
na cama ou mergulhado numa banheira, folheia-se mil vezes,
volta a pôr-se na estante, empresta-se a um amigo,
relê-se 20 anos depois - ou 20 dias -, redescobre-se
com a sensação de que nunca morre, nunca desaparece.
E, depois, há livros e livros. Os que entram na nossa
vida. Os que nos fazem olhar para o mundo de outra maneira
- e para nós também. Os que nunca abrimos
mas sabemos que estão lá, para quando for
preciso. Os que fechamos depois das primeiras páginas
para a eles regressar anos passados. Os que nos fazem passar
noites em claro.
Para um especialista do imediato e do efémero, como
é um jornalista, o livro é de uma outra dimensão
- e por isso há qualquer coisa de quase sagrado que
sentimos estar a violar quando (como agora o PÚBLICO
vai fazer) vamos juntar um livro, uma colecção
de livros, a um jornal. Distribuí-los em conjunto.
Espalhá-los por milhares de bancas e quiosques. Acreditar
que é possível levar assim mais livros, muito
mais livros, junto de uma audiência muito mais vasta.
Tendo a ousadia de tentar que uma selecção
de grandes romances do século passado entrem em casas
onde não há livros, ou onde faltam edições
com a qualidade das que propomos, ou onde de tanto lidos
e emprestados obras como "O Nome da Rosa", ou
"1984", ou "O Ano da Morte de Ricardo Reis",
ou outro qualquer, já têm folhas a descolar-se.
Ou pensando apenas que há livros que se gosta de
ter repetidos, que há prazer em olhar para uma estante,
fazer uma colecção, acreditar que mesmo que
não seja agora que vou ler o que comprei, eu ou alguém
pegará um dia naquele livro e com ele viajará
(viaja-se sempre nas páginas de um livro, mesmo quando
ele não sai na nossa rua).
Não é a primeira vez que o PÚBLICO
propõe ao seus leitores colecções de
livros, mas nunca antes o fez com o mesmo cuidado de selecção
e com tanta qualidade de execução e acabamento.
Nem propondo títulos tão recentes e importantes.
Se acreditamos - como acreditamos - que toda a comunicação
social é serviço público, se acreditamos
- como acreditamos - que tudo o que se fizer pelo livro
e pela leitura é um investimento no país e
nos portugueses, e que essa é também a nossa
obrigação, então esta colecção
ainda faz mais sentido.
Durante 30 semanas sabemos que o jornal, às quartas-feiras,
não escapará ao seu destino de, lido na voragem
de dias apressados, acabar a ser utilizado por alguém
que apenas deseja limpar melhor o vidro de uma montra -
mas acreditamos que o livro que o acompanha será
guardado, coleccionado, folheado, lido, emprestado, usado.
Porque vale a pena, porque vale o tempo, porque, no seu
conjunto, é uma amostra da cultura do século
que passou - e que grande século foi...
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O
colecionador
Eduardo Prado Coelho
Quando entrei para
o Liceu Camões, a grande moda era utilizarmos as
tampas das garrafas dos refrigerantes para enchê-las
com um fundo de plasticina e colar sobre elas fotografias
de jogadores de futebol. Formávamos assim equipas
que se confrontavam em jogos improvisados durante os intervalos
das aulas. Tratava-se de "jogar às caricas",
num ágil e certeiro exercício de piparotes
dados com sentido estratégico. Utilizávamos
os cromos numerados que iam saindo todas as semanas para
serem colados em cadernetas que davam forma à ideia
de colecção. Era a caderneta dos jogadores
de futebol - como poderia ser a dos grandes artistas musicais
ou a dos mais importantes monumentos do mundo. Algo que
está na base daquilo que hoje se faz com a compra
de jornais. Ou não só: o meu banco envia-me
regularmente um saquinho com talheres que tento não
perder. A senhora que entra no quiosque onde adquiro os
jornais interroga-se sobre se já levou para casa
todos os pires a que tem direito. E assim vai o mundo.
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Um
ponto de partida
Fernando Pinto do Amaral
Uma das primeiras colecções
de divulgação literária de que me lembro
foi, ainda na infância, a dos "Livros RTP"
- constava de 100 títulos, foi editada por finais
dos anos 60 e pretendia dar um panorama possível
da literatura portuguesa e universal. Embora menos ambiciosa,
a ideia de publicar agora estes 30 livros às quartas-feiras,
com a edição do PÚBLICO, parece-me
louvável e merecedora de aplauso, na medida em que
permitirá o contacto de muita gente com um número
razoável de obras literárias do século
XX.
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A
melhor receita
Vasco Graça Moura
Esta nova colecção Mil
Folhas vem mesmo a calhar numa altura em que se discute
um tema como o da televisão "generalista"
"versus" televisão "elitista".
Na verdade, é generalista ou elitista propor ao grande
público autores como Thomas Mann, ou Ernst Hemingway,
ou Mário de Carvalho, ou Álvaro Guerra, ou
tantos outros? Destinar-se-á a colecção
antes de mais à faixa esclarecida dos leitores do
PÚBLICO, aos que gostam de ler, aos que têm
livros, aos que seguem a actualidade cultural? Ou a sua
vantagem estará precisamente em propor livros importantes
aos que não têm essas possibilidades, aos que
não foram, por educação ou hábito
adquirido, devidamente induzidos à prática
da leitura, àqueles cuja vida está normalmente
divorciada da efervescência dos grandes centros da
vida cultural e dos valores que nela vão sendo consagrados?
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Eleitos
Eduardo Lourenço
Dois jornais, um italiano, outro português,
numa iniciativa mais que louvável, propõem
ao seu público habitual uma escolha de livros já
clássicos ou aspirando a sê-lo. Como não
são explícitos quaisquer critérios
dessa escolha - por impossíveis ou inúteis
-, os autores apadrinhados por esses jornais são,
mais do que escolhidos, "eleitos". No fundo, é
bom que assim seja. O arbítrio da eleição,
com o seu quê de divino, é menos pretensioso
que o de uma escolha que, ao fim e ao cabo, nada justifica
se não o arbítrio também divino dessa
eleição.
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