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                  | Agosto de 1972 Foto:Espólio de A. A. Monteiro
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              Em Fevereiro  de 1945, aos quase 38 anos de idade, António Aniceto Monteiro embarca em Lisboa  com destino ao Rio de Janeiro – e ao exílio que marcará o resto da sua vida. No  Brasil, espera-o um cargo de professor na Faculdade Nacional de Filosofia, para  o qual este ainda jovem mas já destacado matemático – nascido em Angola,  licenciado da Faculdade de Ciências de Lisboa e doutorado da Sorbonne – foi  recomendado por nada mais nem nada menos do que Albert Einstein, John von  Neumann e Guido Beck.
Monteiro abandona  Portugal porque a entrada na carreira científica lhe foi vedada pelo regime de  Salazar devido às suas convicções políticas. Desde 1938, de facto, tem estado a  trabalhar sem ser remunerado por aquilo que faz. Em 1943, escreveu no seu  currículo: “durante o período de 1938-43, todas as minhas funções docentes e de  investigação foram desempenhadas sem remuneração; ganhei a vida dando lições  particulares e trabalhando num Serviço de Inventariação de Bibliografia  Científica existente em Portugal”.
            Isso não  tem impedido Monteiro de desenvolver, ao longo dos anos, uma intensa actividade  científica e docente na área da matemática pura, algo de quase inédito no país.  Alguns exemplos: em 1936, funda com outros eminentes matemáticos o Núcleo de  Matemática, Física e Química; em 1937, a revista "Portugaliae Mathematica"; em 1940, é co-fundador, com Bento de Jesus  Caraça e Ruy Luís Gomes, da revista "Gazeta  de Matemática" e, no mesmo ano, da Sociedade Portuguesa de Matemática, da  qual se torna o primeiro 
            
              
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                | Em Bahía Blanca, com Ruy Luís Gomes (à esquerda) e Oscar Dodera (entre 1958 e 1960) Foto:Espólio de A. A. Monteiro
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        secretário-geral; em 1941, contribui decisivamente  para a fundação do Centro de Estudos Matemáticos do Porto. “Ele fundou tudo  quanto havia a fundar, participou em tudo quanto havia para participar”, dizia há  poucos dias, numa entrevista ao "Jornal  da Voz do Operário", o matemático  Jorge Rezende.
                Só que,  em 1943, a situação tornou-se insustentável, obrigando Monteiro e sua família a  partir. Diz ainda Resende na mesma entrevista: “[...] o Governo exigia que as  pessoas assinassem um compromisso de fidelidade à Constituição de 1933 e  assumissem não seguir os ideais comunistas. Ora, acontece que António Monteiro  recusou assinar. Por via disso nunca leccionou em Portugal. [...] houve até  antigos companheiros do Colégio Militar que o tentaram convencer a assinar o  compromisso, mas ele disse que fazê-lo era um ‘insulto à sua inteligência’”.
                
              No  Brasil, onde permaneceu quatro anos, Monteiro continuou incansavelmente a fazer  o que tão bem sabia fazer e mais gostava: investigação em matemática (lógica,  análise, topologia, álgebra), organizar o ensino e promover a investigação na  área junto dos jovens universitários. “Monteiro esteve no Brasil até 1949”,  escreve Circe Mary Silva da Silva, professora da Universidade Federal do  Espírito Santo, em Vitória (Brasil), “e durante este tempo marcou sua presença com  atividades importantes, influenciando um grande número de futuros matemáticos  no Brasil”.
                Em 1949, a  história repete-se: é o exílio dentro do exílio. Devido a pressões exercidas  pela embaixada de Portugal no Rio, o contrato académico de Monteiro não é  renovado. Mais uma vez, vê-se forçado a partir – desta vez para a Argentina.  Primeiro, trabalha na Universidade de Cuyo (com sedes em várias cidades do  norte do país), onde co-funda o Departamento de Investigações Científicas – “e  dentro dele, o Instituto de Matemática, sob a direcção de Misha Cotlard  [eminente matemático russo radicado na Argentina]”, escreve o matemático  argentino Edgardo Luis Fernández Stacco num texto publicado no blogue oficial  do centenário de Monteiro (
http://antonioanicetomonteiro.blogspot.com).  E acrescenta: “Este talvez tenha sido o centro matemático mais importante do  país naquela altura.” 
                
               
              
                  
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                    | Na sua casa, em Bahía Blanca (entre 1958 e 1960) Foto: Espólio de A. A. Monteiro
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                Dum exílio ao outro
                Em 1957, Monteiro  acaba por se fixar definitivamente na Universidade do Sul, em Bahia Blanca, com  a tarefa de organizar os estudos de Matemática daquela instituição. 
                Aí, um  dos seus grandes objectivos será a criação de uma biblioteca de matemática de  nível internacional para a investigação em matemática. A biblioteca, que hoje tem  o seu nome, continua a ser uma das melhores da América Latina. Fernández Stacco  recorda que, em 1958, Monteiro estava a dar uma aula quando chegou um camião  com o primeiro carregamento de livros e revistas: “A aula foi suspensa; era a  primeira vez que víamos revistas de matemática”. Em 1970, através de um sistema  de intercâmbio entre revistas estrangeiras e publicações locais criadas por  Monteiro, a biblioteca possuía as colecções de 453 publicações especializadas. 
                Monteiro era  um autêntico “agregador” de matemáticos: ao longo dos anos, visitaram o seu instituto  em Bahía Blanca um grande número de conhecidos matemáticos estrangeiros, alguns  dos quais lá ficaram definitivamente. Entre eles, o seu amigo de longa data Ruy  Luís Gomes.
                Mas a  ironia da História quis que Monteiro sofresse mais uma vez o exílio, numa manifestação  mais local mas não menos dolorosa: em 1975, invocando as medidas  anti-terroristas que estavam a ser tomadas pela ditadura argentina contra “a  subversão”, o reitor ali colocado pelos militares proibiu a Monteiro, já  reformado mas ainda em actividade, a entrada na Universidade e na própria  biblioteca que ele tinha criado. 
                O  matemático Eduardo L. Ortiz, do Imperial College de Londres, que visitou  Monteiro em Bahia Blanca, em 1980 (pouco tempo antes da sua morte),  perguntou-lhe como é que se sentia em relação a essa situação. “Causa-me alguns  problemas”, foi a resposta lacónica de Monteiro.
              Monteiro  passou dois anos em Portugal após o 25 de Abril, entre 1977 e 1979, a convite  do INIC (Instituto Nacional de Investigação Científica) em Lisboa, num cargo  especialmente criado para ele. A sua actividade, apesar da sua saúde ser já  frágil, não pôde deixar de ser marcante. Continuou a trabalhar nas suas  próprias pesquisas, mas também a orientar jovens matemáticos. Duas teses de  doutoramento foram o resultado desse esforço, que lhe valeu ainda o Prémio da  Gulbenkian de Ciência e Tecnologia (em 1978). Em 1979, regressou a Bahia  Blanca, onde morreu a 29 de Outubro de 1980.
              
                  
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                    | Na sua casa, em Bahía Blanca (entre 1958 e 1960) Foto:Espólio de A. A. Monteiro
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                Abaixo o  fascismo!
                Apesar da  energia e paixão que sempre demonstrou, a nostalgia e a tristeza do exílio nunca  o abandonaram. A prova disso: quando de uma viagem sabática pela Europa, em  1969-70, Monteiro evitou cuidadosamente passar por Lisboa. Numa carta enviada a  10 de julho de 1970 a Maria Laura Mousinho Leite Lopes, uma sua ex-aluna,  escreveu: “Volto para a Argentina sem ir a Portugal. [...] Tive o cuidado de  escolher um barco que não pára em Portugal. Ao sair de Vigo talvez veja a costa  de Portugal de longe! O fascismo continua em Portugal devido ao apoio inglês e  yanque. Assim são as democracias ocidentais e cristãs! A palavra de ordem ‘abaixo  o fascismo’ não perdeu actualidade desde a década de 30, inclusive em França”.
                Nessa mesma  viagem, quando da sua passagem por Paris, Monteiro estava a jantar num  restaurante com amigos argentinos quando estes receberam a notícia de que o  ditador Juán-Carlos Onganía, que governava em Buenos Aires desde 1966, tinha  sido derrubado. Perante a alegria deles, Monteiro confessou o quanto teria  gostado de ter recebido a mesma notícia sobre Salazar (já doente, e que morreria  semanas depois).
                Mesmo  depois da Revolução de Abril, Monteiro nunca se reconciliaria totalmente com a  sua Universidade, disse-nos ontem, em conversa telefónica desde a Argentina, o  seu filho Luíz, também ele matemático. Numa carta enviada a 5 de Junho de 1978  ao matemático Alfredo Pereira Lopes, na altura em Paris, Monteiro fala dessa  sua desilusão: “[...] ainda não fiz as conferências na Faculdade de Ciências de  Lisboa, que propus no mês de Outubro; pela simples razão de que não as  marcaram”, escreve. “Não há interesse ou não querem. Paciência. Não volto a  insistir que já me dá vergonha. Darei este mês uma série de conferências na  Faculdade de Ciências do Porto. A de Lisboa parece que não mudou muito com o  tempo.”
                
                 
              
                  
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                    | Aeroporto de Ezeiza, Argentina. Partida para Lisboa (1977) Foto:Espólio de A. A. Monteiro
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              Agradecer  a Salazar
                O  filósofo e físico argentino Mario Bunge resumiu da seguinte forma a personagem  de Monteiro, numa conferência em Bahía Blanca em Dezembro de 1996: “Esse grande  homem e matemático, cuja primeira preocupação ao pisar solo argentino foi a de  criar uma escola”. E acrescentou com ironia: “Temos de agradecer ao ditador  Salazar que fez a vida impossível ao Professor António Monteiro, porque assim  ele veio para a Argentina.”
                De  regresso a Bahía Blanca, Monteiro terá encarado ainda a possibilidade de  regressar a Lisboa. Numa outra carta a Pereira Lopes, a 31 de Maio de 1979,  após um período de doença, lá estava ele outra vez a trabalhar com grande  entusiasmo: “Comecei de novo a levantar-me às 4 ou 5 da manhã para trabalhar.  São tão lindos os temas sobre os quais estou trabalhando, que não quero perder  tempo.”
                Mas numa  das suas últimas cartas a Ortiz após o seu regresso, confiava, a propósito da  sua vida: “Assim é a vida, caro Ortiz. Desgastamo-nos em tarefas que nunca  acabam, mas apesar disso iniciamo-las com entusiasmo e dedicação, porque as  esperanças e certezas nunca se perdem”. E num tom mais nostálgico: “Tristezas  de Bahía Blanca! Nas margens do Napostá; entre os ventos e tormentas em que a  terra nos afoga, vejo Lisboa distante – recordações da minha infância!”
            O seu centenário vai ser comemorado em simultâneo  em Lisboa e Bahía Blanca, a partir de hoje (informações em www.spm.pt).