20-10-1996
Dupond e Dupont
Carlos Pessoa
Eu diria mesmo mais: se há alguma
dupla humorística na história da banda desenhada que vem
de imediato ao espírito é Dupond e Dupont, os dois famosos,
inqualificáveis e quase simétricos polícias criados
pelo belga Hergé numa das aventuras de Tintin.
Surgiram em 1934 como simples comparsas na versão a preto e branco
de "Os Cigarros do Faraó" — eram, no início,
os agentes X 33 e X 33-bis, mas o autor baptizou-os depois com os nomes
com que ficaram para a posteridade —, embora a primeira figuração
(anónima) remonte à versão a cores de "Tintin
no Congo". No entanto, conquistaram rapidamente um estatuto de relevo
graças... à sua nulidade mais absoluta.
Apesar de uma extraordinária semelhança — distinguem-se
um do outro porque Dupond tem um bigode direito, enquanto o de Dupont
sobe ligeiramente nas pontas —, não têm qualquer grau
de parentesco. O que o criador de Tintin quis simbolizar com estes dois
personagens é fácil de perceber: a pretensão e a
estupidez, a intolerância imbecil e arrogante dos pequenos burgueses
de todas as latitudes, a inépcia e falta de jeito que podem tornar-se
perigosas com facilidade.
Mais difícil é saber como surgiram na cabeça de Hergé:
"Já não me lembro", confessou nas suas célebres
entrevistas a Numa Sadoul ( "Entretiens avec Hergé",
Casterman, 1989). "A verdade é que o meu pai tinha um irmão
gémeo que morreu três ou quatro anos antes dele. E, até
ao fim, vestiam-se de forma idêntica (...) O que é curioso
é que nunca pensei sequer um segundo neles quando criei os Dupond(t)".
Vamos aceitar que sim. Porque o que realmente interessa são os
"gags" extraordinários que vivem nas aventuras de Tintin.
Circunspectos em qualquer circunstância — ou, pelo menos,
é o que eles julgam... —, dão-se uns inimitáveis
ares de Sherlock Holmes que tudo no gesto seguinte desmente. Como recorda
o mesmo Sadoul, só eles é que poderiam gritar "que
ninguém saia" numa situação de "As Jóias
da Castafiore" em que entram numa sala de onde ninguém tem
vontade de ir para onde quer que seja!
Quase seria desnecessário lembrar que nunca conseguem levar a bom
termo as missões de que são incumbidos. E não é
raro que as suas desajeitadas iniciativas acabem por se virar contra eles,
e isto não é apenas uma imagem!
Os seus delírios verbais, que surgem numa fase já relativamente
tardia da série, são hilariantes até às lágrimas.
E constituem, para todos os efeitos, a sua imagem de marca, de que o "eu
diria mesmo mais" é o expoente absoluto.
Ao lado desta dimensão cómica dos personagens, há
as situações em que se vêem envolvidos. Aparecem num
quadradinho para chocarem, com estrépito, num obstáculo
na imagem seguinte. E os trambolhões, escorregadelas, e quedas
de veículos em movimento (tanto pode ser um jipe como um combóio)
são a previsível consequência de qualquer gesto mais
inócuo. Ao ponto de se registar uma média de duas quedas
por episódio. Nada mau!...
Se é verdade que a repetição gera o riso no leitor,
não é menos certo que Hergé acentua até ao
limite essa fatalidade potencialmente auto-destruidora com a constante
exploração de um tique — o de os dois detectives tudo
fazerem para passar despercebidos. O resultado é o que se sabe:
vestuário folclórico nos países que visitam (dos
Andes à China) ou um indescritível fato de marinheiro que
mais ninguém usa...
Se tudo isto já não chegasse para abalar a credibilidade
profissional dos Dupond(t), há ainda as inúmeras circunstâncias
em que eles são vítimas das suas próprias investigações.
Dois exemplos: em "O caranguejo das pinças de ouro" perseguem
falsários e acabam a pagar uma despesa com notas falsas; em "O
segredo do Licorne", roubam-lhes as carteiras umas 20 vezes antes
de apanharem o "pick-pocket" Aristide Filoselle...
Bem vistas as coisas, não há muito que possa ser adiantado
em abono de duas criaturas com uma estreiteza de sentimentos e uma inteligência
tão acanhada? Ora digam lá: o que se pode pensar de quem
procura sair do deserto e acaba a perseguir o traçado dos pneus
da sua própria viatura?!... 

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