26-03-2004 No final da sua vida, Hergé já só trabalhava por prazer. Por isso, não surpreende que tenham decorrido uns intermináveis oito anos entre o final da história anterior de Tintim (“Voo 714 para Sydney”) e este “Tintim e os Pícaros”, que amanhã será distribuído com o PÚBLICO. A história, que começou a ser publicada na edição belga da revista “Tintin” em 16 de Setembro de 1975, foi recebida com imensa expectativa. Assente a poeira e “digerida” a nova aventura do jovem repórter, os olhares críticos não foram tão entusiasmantes como no passado. No entanto, “Tintim e os Pícaros” passou com distinção na avaliação popular, tendo constituído um enorme êxito de vendas. A primeira coisa que ressalta é a transformação formal a que Hergé submeteu o seu personagem. Tintim deixa de usar calças de golfe para envergar “jeans”, pratica ioga, anda de moto e ostenta no capacete o símbolo da paz celebrizado pelos “hippies”. A leitura da história põe outras mutações em evidência. Dir-se-ia que o herói “envelheceu” com o seu criador, atravessando toda a narrativa com uma atitude bem mais de observador — outros preferem falar de passividade — do que de activo interveniente e construtor dos eventos e situações. Aliás, é curioso registar que Tintim não parte com Haddock para Tapiocapólis, onde só chega com alguns dias de atraso. Em contrapartida, os habituais segundos planos ocupam uma inesperada e surpreendente boca de cena, a começar por Alcazar, passando pela Castafiore e terminando em Peggy, a inenarrável mulher do aspirante a ditador. Só Girassol é, neste contexto, igual a si mesmo, conseguindo ver nesta última o que mais ninguém vislumbra: a admirável incarnação do “eterno feminino”… Para completar o ramalhete, eis que regressam o coronel Sponz (“O Caso Girassol”) — agora como Esponja no papel de chefe da polícia política do general Tapioca —, Pablo, que salvara Tintim em “A Orelha Quebrada” e o trai na presente história, e o explorador Ridgewell (“A Orelha Quebrada”), sempre ao lado dos índios Arumbayas. “Tintim e os Pícaros” marca ainda o regresso do criador belga aos temas de natureza política. A luta política de guerrilha na América Latina, nos anos 60 e 70, é um dos elementos inspiradores, acentuado pelos desenvolvimentos em torno do caso Régis Debray, um intelectual francês que foi feito prisioneiro do exército boliviano quando acompanhava um comando guevarista no país. A visão caricatural do comunismo em “Tintim no País dos Sovietes” ficou para trás, mas a atitude quase militante do herói em “O Lótus Azul” também. Desta vez, Tintim só ajuda os Pícaros a derrubarem o regime totalitário de Tapioca na medida em que isso lhe permite salvar os seus amigos. Além disso, mais do que uma verdadeira revolução, aquilo a que se assiste é uma mera dança de cadeiras, como se torna rapidamente perceptível aos olhos de todos. Hergé fala através de um herói crepuscular, em clara perda de energia e convicção. O último diálogo travado entre Tintim e Haddock é bem revelador desse estado de alma: “Não me desagrada nada voltar para Moulinsart”, diz o velho lobo-do-mar. “Nem a mim, capitão…”, replica o herói. O cansaço e o desencanto tomaram definitivamente o posto de comando: “Tintim e os Pícaros” é a última aventura realizada por Hergé. |