08-01-2004
"O Caranguejo das Tenazes de Ouro"
Por Carlos Pessoa

Em 1940, a Bélgica fica virada do avesso com a invasão das tropas hitlerianas. Como milhões de europeus, Hergé vê a sua vida quotidiana sofrer alterações radicais. O jornal "XX.ème Siècle", onde as aventuras de Tintim eram publicadas (suplemento juvenil "Le Petit Vingtième") é encerrado. O desenhador fica tecnicamente desempregado. Como não é homem para se deixar abater pela adversidade, retoma pouco tempo depois a sua actividade noutro jornal de Bruxelas, o "Le Soir", onde "O Caranguejo das Tenazes de Ouro", história que amanhã é distribuída com o PÚBLICO, começa a ser publicada em 17 de Outubro de 1940.

Inicialmente, o suplemento "Le Soir-Jeunesse", com uma fórmula muito semelhante à que enquadrara nos dez anos anteriores as aventuras do jovem repórter, tinha oito páginas, sendo duas delas ocupadas com a banda desenhada de Hergé. A extrema penúria de papel obrigou a reduzir muito rapidamente o tamanho do suplemento, que acaba por ser suprimido em 3 de Setembro do ano seguinte. Obviamente, as aventuras de Tintim ficam suspensas, mas 20 dias mais tarde passam a ser inseridas no corpo do jornal, sob a forma de uma minúscula tira diária. Esta alteração não intimida Hergé, que procede a uma alteração radical dos seus métodos de trabalho. O resultado imediato é a explanação de uma história ainda mais vigorosa, servida por um grafismo cada vez mais apurado, requisitos indispensáveis para prender a atenção do leitor num "espaço" narrativo ínfimo - três ou quatro quadradinhos apenas.

Nesta aventura, Hergé regressa de novo à temática do tráfico de droga. O imediato Allan Thompson faz a sua primeira aparição, torturando e enxovalhando o capitão Haddock. Ao ver o comportamento deste personagem alcoolizado e sem vontade própria, violento, patético e perigoso, é difícil imaginar que ele se irá tornar no fiel e constante companheiro de Tintim. Com efeito, as suas primeiras intervenções são um desastre total: sob o efeito do álcool, deita fogo à chalupa de salvamento para se aquecer e agride o nosso herói com violência quando este pilota um avião...

Por estas e outras situações - umas mais dramáticas, outras mais cómicas -, a estreia do velho marinheiro não podia ser menos auspiciosa. Mas a verdade é que se alguém quisesse encontrar uma palavra-chave para qualificar este "O Caranguejo das Tenazes de Ouro" ela só poderia ser Haddock. O personagem, pela sua parte, acaba por compensar a fidelidade dos admiradores graças a um gesto redentor que o transforma - apesar das frequentes recaídas - num homem novo: uma literal travessia do deserto ("o país da sede", repete obsessivamente Haddock), na companhia de Tintim e Milu, dá-lhe a oportunidade soberana de fazer uma cura de desintoxicação.

A transformação de Haddock num herói positivo não impediu que esta história fosse alvo de medidas censórias por ocasião da edição americana. Dois personagens negros - um que é atado por Tintim e outro que tortura o capitão com um pau de bambu - são substituídos por brancos "maus". Haddock, por seu lado, deixa de ser visto a levar à boca e a esvaziar uma garrafa inteira em poucos segundos.