26-12-2003
Uma Agitada Aventura Colonial
Por Carlos Pessoa

Depois da viagem de Tintim ao país dos sovietes, o sonho de Hergé é levar o seu herói até à América. Profundamente apaixonado pela cultura índia, seus costumes e mitos, começa de imediato a trabalhar nesse projecto. O padre Wallez, director do "Le Petit Vingtième" e mentor espiritual do desenhador, é que não está pelos ajustes: se há algum lugar onde levar Tintim é o Congo, na altura uma colónia belga, juntando o útil ao agradável - espalhar o espírito missionário e evangelizador, incrementando as vocações coloniais. Assim acontece e o resultado é "Tintim no Congo", hoje distribuído com o PÚBLICO.

Ao contrário da história anterior ("Tintim no País dos Sovietes", que é também a primeira da série), Tintim é acolhido em África como um herói internacional e uma figura quase lendária. Aliás, a glória precede-o nessa saga africana, pois os representantes da grande imprensa internacional - curiosamente, Hergé inclui também o deferente delegado do "Diário de Lisboa"... - disputam entre si o privilégio de publicar em exclusivo as reportagens do herói. Mas este permanecerá fiel ao "Vingtième", onde esta BD será publicada entre 5 de Junho de 1930 e 11 de Junho do ano seguinte.

De um modo geral, o traço de Hergé apresenta-se mais firme, mas sem perda de espontaneidade. Quanto ao desenho dos animais, é o próprio autor a confessar que pediu "ajuda" às gravuras de Benjamin Rabier. Perante uma multidão de "pretos" preguiçosos, estúpidos e infantis que se exprimem em mau francês, Tintim louva os méritos e grandezas da mãe-pátria. Milu também não está pelos ajustes: ele aceitou ir a África para caçar grandes feras, no que é imitado pelo seu dono, que não tem o menor problema em matar animais a torto e a direito, eliminando até um rinoceronte com dinamite... No entanto, o herói não chega a ter adversários locais verdadeiramente maus, pois os negros desta história são demasiado pueris para serem perigosos.

Tal como acontecera a propósito de "Tintim no País dos Sovietes", o padre Wallez decide organizar uma recepção ao herói quando este regressa a Bruxelas. Uma multidão impressionante acolhe um Tintim de carne e osso e um Milu pedido de empréstimo ao dono de um café da cidade, que quase é esmagado no boulevard du Jardin Botanique por centenas de miúdos que lhe querem dar torrões de açúcar...

A publicação de "Tintim no Congo" não levanta qualquer polémica na época, de tal modo a história está conforme ao espírito da mentalidade europeia daquele tempo - por outras palavras, ter territórios ultramarinos é atributo dos grandes países e sinónimo de poder no concerto das nações. Só mais tarde, quando a questão colonial entra na agenda política, é que a aventura africana de Tintim passará pelo crivo da análise político-ideológica.

Esta BD valerá a Hergé acusações de colonialismo e racismo, das quais este se defende invocando a mentalidade reinante na sociedade belga dos anos 30 do século XX. É verdade, mas não o é menos, nesta fase inicial da sua obra, a colagem do artista aos valores culturais e ideológicos dominantes. E não deixa de ser curioso que, ao realizar a reformulação gráfica e de diálogos desta história, em 1946, o artista belga a deixe praticamente intacta em termos narrativos.

Hergé nunca escondeu o seu desamor por "Tintim no Congo". No entanto, querelas ideológicas e filosóficas à parte, permanece como um excelente documento sobre a imagem estereotipada que os europeus tinham do continente africano.