18-12-2003
Os sonhos brancos de Hergé
Por Carlos Pessoa


“Naquela época, eu atravessava uma séria crise e os meus sonhos eram quase todos em tons de branco. E eram muito angustiantes. Tomava nota deles e recordo-me de um em que me encontrava numa espécie de torre constituída por rampas sucessivas. Folhas mortas caíam e cobriam tudo. A uma dada altura, numa espécie de alcova de uma brancura imaculada aparecia um esqueleto todo branco que tentava apanhar-me. E nesse instante, à minha volta, o mundo tornou-se branco, branco.

E eu punha-me em fuga, uma fuga desvairada...” Na série de entrevistas concedidas por Hergé a Numa Sadoul (“Entretiens avec Hergé”, Editions Casterman) é assim que o criador de Tintim recorda esse crítico ano de 1958. Naquela época, o autor dava forma, com grande esforço, a esta aventura que começou a ser publicada na revista “Tintin” (Bélgica) em 17 de Setembro de 1958, prolongando-se até 25 de Novembro do ano seguinte. O psicanalista junguiano com quem Hergé fazia terapia aconselhou-o vivamente a abandonar o trabalho quando ouviu a descrição daquele sonho. Felizmente, Hergé não lhe deu ouvidos.

A atenção e a curiosidade que a obra do mestre belga têm despertado entre os estudiosos — é curioso constatar que o seu “rival” Astérix, apesar de constituir hoje um êxito de tiragens e vendas muito superior ao de Tintim, nunca suscitou tanto interesse por parte dos analistas e críticos — encontram nesta banda desenhada um terreno de trabalho de uma fertilidade quase sem limites.

Na edição especial da revista francesa “(À Suivre)” de Abril de 1983, publicada um mês após a morte de Hergé, Benoît Peeters — o “tintinófilo” que é, simultaneamente, o argumentista do ciclo das Cidades Obscuras, em conjunto com o desenhador Schuiten — refere-se a esta obra como uma “forma de exorcismo”, o que na sua opinião lhe conferiria “esse tom tão particular, muito mais sério do que o das outras aventuras de Tintim”.

De facto, há uma intensidade dramática em toda a narrativa que não cessa de aumentar até ao clímax — o momento em que o herói encontra o seu amigo Tchang, que todos julgam morto ou vítima do Yéti. E Sadoul sugere que esta história é como uma “espécie de ‘hino ao amor'”. “Digamos uma espécie de canto dedicado à amizade”, responde-lhe Hergé.

O ponto de partida deste episódio — um sonho premonitório que leva o herói, contra ventos e tempestades, a voar em socorro do seu amigo, quando há todas as probabilidades de Tchang estar morto — tem ocupado a atenção de vários críticos. Os fenómenos paranormais atravessam com uma certa constância a obra de Hergé: premonições, telepatia, intervenções extraterrestres, simbolismos mais ou menos “obscuros” e outros fenómenos subjectivos têm o seu lugar, discreto por vezes, mais aberto em outras, nas histórias de Tintim. Acima de todos eles, porém, está o sonho. “Mas eu acredito nos sonhos premonitórios”, responde Hergé a Sadoul. “No mesmo álbum, há também o fenómeno de levitação, que foi referenciado por um significativo número de autores dignos de crédito, como Alexandra David-Neel e Fosco Maraini [exploradores do Tibete no começo do século XX], que passaram longas estadas no Tibete.”

O modo como Hergé trabalha este material ressalta claramente em “Tintim no Tibete”: entregando-se ao sonho, o autor selecciona entre os elementos disponíveis aqueles que são mais utilizáveis de um ponto de vista gráfico. Mas, ao contrário do que se poderia concluir, não é apenas esta dimensão do onirismo que interessa ao artista: “Eu utilizo a sua lógica [do sonho] ou, melhor ainda, a sua aparente falta de lógica. Os sonhos que habitualmente temos são tão vagos e de tal modo fluidos que é difícil desenhá-los: sente-se que é mais ou menos aquilo, mas quando lhes queremos dar uma forma, eles escapamse- nos. É por isso que se torna necessário acrescentar ou suprimir coisas, ou seja, reconstruir o sonho.”

presença tutelar e avassaladora do branco — neste caso, a neve dos Himalaias por onde Tintim, Haddock, “Milu” e o “sherpa” se aventuram — tem tudo a ver com as “visões” e os sonhos-pesadelos de Hergé. Significando tanto a ausência de cor, como a soma de todas as cores, o branco surge associado ao começo e ao fim da vida diurna e do mundo tal como ele se manifesta. Em numerosas tradições, o branco é a cor do “candidato”, ou seja, daquele que vai mudar de condição. Por isso, tem um valor-limite, constituindo uma cor de passagem, no sentido em que essa ideia se associa aos ritos de passagem, que assinalam a morte de uma condição e o renascimento para outra. A esta luz, compreende-se perfeitamente que Hergé, numa fase de mudança profunda na sua vida — o seu divórcio e posterior casamento com Fanny Vlamynck é um dos aspectos do problema —, tenha colocado o branco no centro da sua narrativa tibetana. A neve é algo de sufocante e perigoso, mas que contém também em si mesma uma dimensão redentora. Ora, se Tintim e os seus pares aceitam correr os riscos, enfrentar os perigos e lidar com as ameaças de uma dura prova, é porque sabem que no final pode haver um prémio para a sua coragem, abnegação e amor: o encontro com Tchang. “Tintim no Tibete” é, de facto, o comovente hino à amizade de que Hergé falou um dia.