11-12-2003
“Carvão no Porão”
Carlos Pessoa

O tráfico de escravos no século XX e os negócios obscuros do armamento são os temas centrais de “Carvão no Porão”, décimo terceiro título das aventuras de Tintim, que amanhã será posto à venda com o PÚBLICO.

 

Tudo começou com uma notícia na imprensa em que se denunciavam situações extremas de exploração humana. Hergé ficou em estado de choque e daí a construir uma história sobre o tema foi um passo que o autor não hesitou em dar. Esta banda desenhada é, de certo modo, a continuação de “Tintim no País do Ouro Negro”, história que os leitores terão oportunidade de conhecer dentro de algumas semanas. Não surpreende, pois, que o artista belga volte a fazer figurar na história personagens intervenientes em episódios anteriores. É o caso do emir Ben K a l i s h Ezab e do seu filho traquinas do general Alcazar, de Dawson (o ex-chefe de polícia concessão internacional de Xangai do dr. Mulle (agora sob a identidade de Mull Pacha) e do imediato Allan , que tanto martirizou Haddo no passado e agora volta a tirar desforço. Para completar o painel, eis que irrompem a Castafiore, o “nosso” Oliveira de Figueira e, culminando a aventura, Lampion, o atrabiliário vendedor de seguros. Com este “casting” de respeito, Hergé entrega-se a um subtil jogo de luzes e sombras em que Tintim e os seus adversários quase não se cruzam nem defrontam abertamente — a sequência inicial em que Haddock e Alcazar chocam ao dobrar de uma esquina dá, aliás, o mote para o resto da . Pode dizer- se que o autor abdica dos ingredienes clássicos da aventura ara dar inío a uma ova etapa trajectória seu herói, is centrada dimensão oparódica narrativa atingirá o apogeu em “As Jóias de Castafiore”. Já começa pois a ser perfeitamente reconhecível neste álbum o exercício de divertimento radical a que Hergé se entrega com os seus personagens, cujas idiossincrasias domina em absoluto. Após a publicação desta aventura na revista “Tintin” (entre Outubro de 1956 e Janeiro de 1958), o autor foi por mais de uma vez acusado de racismo — a maioria dos ataques são francamente injustos —, em especial pela forma como trata os peregrinos muçulmanos que supostamente viajavam para Meca. Não deixa de ser irónico que Hergé seja visado por via de uma banda desenhada cujo objectivo era precisamente o oposto, ou seja, denunciar a sobrevivência de práticas de esclavagismo no mundo contemporâneo. Em todo o caso, o criador de Tintim acusou o toque, sentindo a necessidade de alterar, na reedição do mesmo álbum em 1967, os diálogos travados entre Haddock e os negros encerrados no porão do “Ramona”. Enquanto na primeira versão os personagens se exprimiam em “pretoguês”, na nova versão Hergé optou pela fórmula usada na tradução de romances americanos, ou seja, praticando a elisão de algumas letras das palavras. O texto da carta em que Kalish Ezab confiava o seu filho a Tintim foi submetido à mesma operação de cosmética, desta vez recorrendo a um estilo cheio de floreados que estão mais em conformidade com a personalidade do emir.