05-12-2003
O que disse Hergé sobre "Tintim na América"
"Entrevista avec Hergé", de Numa Sadoul, Éditions Casterman

— Há muito tempo que trazia a América no coração. O que eu queria era fazer uma história com índios; era o meu ponto de partida, o meu verdadeiro objectivo. Mas as coisas foram evoluindo durante a realização da história e não falei dos índios tanto quanto desejava. Mesmo assim ainda pude introduzir a situação em que brancos americanos exploravam os desgraçados pelesvermelhas… o que me pediram algumas vezes para modificar como condição para distribuir Tintim em certos países. Mas eu mantenho a minha posição: disse a verdade e não seria isso que ia retirar!

(…) Em Maio de 1971, falou-me de Chicago, que tinha acabado de conhecer, muito tempo depois de a ter imaginado na sua história: pareceu-lhe que a realidade imitava a ficção…

— Com efeito, Chicago — que é uma bela cidade — é uma cidade onde tive medo, ou melhor, senti uma surda inquietação, bastante desagradável. Aliás, aconteceu-me um pequeno episódio quando atravessava um enorme parque de estacionamento quase deserto: estavam lá quatro negros que pareciam pacíficos. Mas quando cheguei junto deles barraram-me o caminho com ar ameaçador, dizendo-me em americano algo que eu não compreendi. Acabei por entender que queriam um “quarter”, uma moeda de 25 cêntimos, para me deixarem passar. Um deles, agarrando-me por um braço, sacudiu-me como a uma árvore de fruto. Protestei, em francês, e um deles respondeu-me de imediato, também em francês: “Hé! Este sítio não é bom para si… Vá!”… Decidi que era melhor abreviar a conversa e, obviamente, dei-lhes os 25 cêntimos. Não foi nada de terrível, mas é uma boa ilustração da vida em Chicago, a quem muitos chamam “the winding city”, devido a um vento seco e ácido que sopra, pelo menos durante o mês de Abril, do lado do lago Michigan, e que provoca uma desagradável sensação de mal-estar, de desconforto. A minha impressão teria sido diferente se tivesse lá ido no Verão…

Em “Tintim na América” introduz um personagem real, Al Capone. Creio que é a única vez em que isso acontece…

— Al Capone era, para mim, um personagem quase lendário: foi por isso que eu o coloquei em cena tal qual. (…) Nesta história eu não tinha argumento nem um plano estabelecido. Ia trabalhando ao acaso, ao sabor da inspiração. Em cada semana eu colocava Tintim numa situação difícil, perguntando a mim mesmo, frequentemente, como é que ia tirá-lo dali! Também para mim, as aventuras de Tintim eram uma grande aventura!... Foi só a partir de “O Lótus Azul” que eu modifiquei o meu método de trabalho e tentei construir verdadeiros argumentos.