05-12-2003 Os malefícios do capitalismo e a rejeição da sociedade de consumo, sob fundo de aventura, dão vida à aventura americana de Tintim, o maior sucesso de Hergé durante muito tempo Hergé tem 24 anos quando começa a cheirar o doce perfume do êxito. Tintim já foi ao País dos Sovietes e acaba de regressar do Congo. A seguir, tal como era seu desejo inicial, o jovem repórter faz as malas para atravessar o Atlântico e triunfar na América. Para o criador belga, Tintim é um cavaleiro andante em luta permanente contra as forças do mal. No caso presente, a defesa dos índios explorados e expulsos das terras dos seus antepassados. Não será bem assim, até porque a nova aventura de Tintim, iniciada em “Le Petit Vingtième”, em 3 de Setembro de 1931, começa em Chicago, cidade natal de Walt Disney e última morada de Al Capone... Um ano antes, tinha sido publicado um livro de Georges Duhamel, prémio Goncourt de 1918, que provocou forte impacte na Europa. “Scènes de la Vie Future”, escrito no rescaldo do grande “crash” bolsista de Nova Iorque que desencadeou a depressão económica e gerou milhões de desempregados e famintos, é uma violenta denúncia do consumo e da publicidade, da automatização e do dinamismo capitalista sem ética. A leitura de “Tintim na América”, que hoje é distribuído com o PÚBLICO, revela muito do que pensava e sentia Hergé no início daquela década. Há nele uma rejeição liminar de uma civilização baseada no poder material, onde o dólar ocupa o lugar dos valores morais e os arranha-céus desafiam provocadoramente os altos domínios do sagrado. Por trás do combate infatigável a todas as formas de banditismo — Tintim neutraliza 355 “gangsters” inscritos no sindicato do crime de Chicago —, há um sentimento anticapitalista que é o contraponto do anticomunismo expresso em “Tintim no País dos Sovietes”. À luz do desconforto provocado, no Velho Continente, pela velocidade vertiginosa a que o Novo Mundo vai sendo erguido — cidades construídas da noite para o dia, presença invasiva da publicidade no quotidiano, circulação automóvel vertiginosa, manifestação de fenómenos sociais de novo tipo, como o crime organizado, etc. —, compreende-se facilmente por que motivo “Tintim na América” será durante muito tempo o maior sucesso de Hergé. O herói afirma-se, contra todos os ventos e tempestades da modernidade, como o símbolo do indivíduo intrépido e corajoso, em oposição frontal ao poder discricionário do sistema. A denúncia das soluções adoptadas para resolver o caso dos índios — que o autor pretendera inscrever, inicialmente, no centro da aventura — insere-se nesta lógica demonstrativa do carácter ideologicamente insidioso do novo poder americano. O criador belga continua a averbar progressos no domínio das técnicas narrativas. No entanto, as limitações são evidentes, pois Hergé ainda domina imperfeitamente os códigos e a gramática desta forma de expressão. Aos olhos dos leitores, porém, isso importa pouco. Nos anos 30 do século passado, ninguém perdia tempo a estudar a banda desenhada. O próprio autor poderia fazer suas, e aplicáveis à BD, as palavras de Chaplin a respeito do cinema: “Um divertimento de hilotas, um passatempo de iletrados.” Não era inteiramente assim: em Paris, por ocasião da publicação desta história em “Coeurs Vaillants”, o desenhador Marcel Turlin (Mat) encontra perturbadoras semelhanças entre “Tintim na América” e uma aventura sua da série Pitchounet, “Fils de Marius”. Acusa Hergé de contrafacção, mas um tribunal arbitral da Sociedade do Direito de Autor, composto pelos autores de BD Étienne Le Rallic e Jean Chaperon, arquiva o processo.![]() |