04-12-2003 A construção convulsiva de um novo mundo é vista através de alguns dos seus ícones maiores, como a guerra entre “gangs” e a expulsão dos índios dos seus territórios naturais Tintim chega a Chicago no dia 3 de Setembro de 1931. A primeira ideia de Hergé era construir esta banda desenhada – a terceira da série, depois de o herói ir à União Soviética e ao Congo – em torno dos povos índios, habitantes origina do continente, que sempre fascinaram o criador belga. Como em outras situações, o projecto evoluiu naturalmente em diversas direcções, revelando um propósito vincado de dar a conhecer o máximo de elementos narrativos possíveis: a guerra entre grupos rivais de “gangsters”, a “lei seca”, a vida nos desertos e pradarias, a descoberta dos poços de petróleo e a construção acelerada de novos espaços urbanos sempre mais para Oeste. Da ideia inicial permanece uma das mais eloquentes sequências de “Tintim na América”, o álbum que amanhã será distribuído com o PÚBLICO: a expulsão dos índios à frente das baionetas dos soldados brancos americanos, depois de ter sido descoberto “ouro negro” nos seus territórios. A crueza, que é também a verdade sobre o fenómeno, desagradaria a vários editores estrangeiros, que tentaram em vão – honra seja feita a Hergé – que o autor suprimisse esta prancha na futura versão a cores. O ritmo alucinante a que se processou o primeiro desenvolvimento económico e social dos Estados Unidos parece ter contagiado o desenhador, que impregna a história com uma “pressa narrativa” desde as primeiras pranchas. É na vivacidade de encadeamento de situações que reside, aliás, uma das qualidades maiores deste álbum, que fica vários furos acima das histórias precedentes. Ao contrário das primeiras aventuras, Hergé não se limita a proporcionar aos seus leitores uma mera sucessão de “gags” mais ou menos bem articulados. Ou seja, procura impor ao enredo um movimento de fundo irresistível, que parece arrastar os personagens nas suas deambulações pela América. O autor conservará esta dinâmica na posterior versão a cores, redesenhada em 1945, e que agora se dá a conhecer aos leitores do PÚBLICO. Em contrapartida, Hergé suprime todos os elementos mais “toscos” – e são bastantes – da narrativa original, em que chega a verse um personagem sair pela esquerda da prancha, dando a impressão que recua sobre os próprios passos. Pela primeira e única vez em toda a série,
o autor faz figurar um indivíduo real nas histórias de
Tintim, designado pelo seu verdadeiro nome: é o “gangster” Al
Capone, que na época já era uma figura quase mítica,
embora pelas piores razões. Este é um dos pontos culminantes
no combate sem quartel que Tintim trava com os homens de mão
do célebre malfeitor. A redução de boa parte da
história a este braço-de-ferro com o crime organizado
permitiu a Hergé resolver um sério problema com que ele
se debateu nas primeiras aventuras: a escassez de documentação
detalhada sobre os ambientes e locais onde fazia evoluir o seu herói.
No final, em sinal de reconhecimento pela “limpeza” feita, Tintim percorrerá em
apoteose as ruas de Chicago, regressando logo a seguir à Europa. |