28-11-2003
Tintim perdido nos mares do Sul

Carlos Pessoa

Sob a pressão do sucesso crescente de Astérix, Hergé regressa ao estirador. Entre Jacarta e Sydney, esta aventura tem a mesma espessura de um sonho. Terá mesmo acontecido?

A “rentrée” de 1966 é agitada pelo aparecimento nas livrarias de “Astérix chez les Bretons”, editado pela Dargaud. É o oitavo álbum da série, com uma tiragem inicial de 600 mil exemplares. A criação de Uderzo e Goscinny faz capa nas grandes publicações francesas e o “New York Times” consagra um longo artigo a “este herói da BD que arrebata o coração dos franceses”.

As comparações com Tintim são inevitáveis e isso começa a perturbar Hergé, ainda que este considere o sucesso da série justificado pela sua inegável qualidade. Compara o dinamismo promocional da Dargaud com o que considera ser a falta de agressividade comercial da Casterman. Esta, porém, rejeita as acusações de passividade: Tintim continua a vender-se muito bem e se há alguém que quebrou o ritmo da série é o próprio Hergé, que não produz nada de novo há quatro longos anos.

De facto, em segredo, os Estúdios Hergé trabalham numa nova aventura desde há algum tempo, mas a inspiração parece ter abandonado o autor. Um dia, porém, o seu secretário particular deixa-lhe no gabinete um “dossier” de imprensa sobre Astérix. O herói é tratado, invariavelmente, de forma pouco lisonjeira – “Na peugada de Astérix, Tintim morde o pó” ou “Astérix tem o mesmo sucesso que Tintim teve outrora” são algumas das afirmações impressas – e Hergé ganha uma fúria. Pouco tempo depois, a primeira prancha de “Voo 714 para Sydney” surge na revista “Tintin”.

Toda a acção desta banda desenhada decorre entre a descida de Tintim e os seus companheiros no aeroporto de Jacarta, numa escala que há-de levá-los a Sydney, e a última chamada para o voo da Qantas rumo a esta cidade australiana. Entre estes dois momentos passaram-se vários dias, mas quando a história chega ao fim, os personagens não se lembram de nada. Dirse- ia que esta aventura tem a mesma natureza dos sonhos que se esquecem automaticamente no momento em que acordamos. Tudo aquilo aconteceu mesmo?...

Com “Tintim no Tibete” e “As Jóias de Castafiore”, os dois álbuns precedentes, a série atingiu o seu apogeu. Hergé está consciente disso e sabe que não lhe é permitido dar passos em falso. Por isso, decide regressar aos terrenos, bem conhecidos, da pura aventura, tendo como pano de fundo a hipótese de existência de vida inteligente fora da Terra. O registo é clássico e o desdobramento narrativo da história não traz grandes surpresas. Isso não significa que elas não existam, a começar pelo ajuste de contas definitivo com Rastapopoulos e Allan Thomson, dois malfeitores que fizeram “estragos” vários em outras aventuras. Em contrapartida, surgem novos personagens: o milionário Carreidas, caricatura de Marcel Dassault, o construtor dos aviões Mirage e Mystère; Mik Esdanitoff, directamente inspirado em Jacques Bergier, jornalista da revista “Planète” e co-autor de um “best-seller” dos anos 60, publicado em Portugal com o título de “O Despertar dos Mágicos”; e o dr. Krollspell, director de um instituto psiquiátrico que se supõe ter passado por campos de concentração nazis.

A derradeira surpresa chega na última prancha. Numa das raras cedências de Hergé aos insistentes pedidos de leitores para figurarem nas histórias, o jovem jornalista de televisão que entrevista Haddock e lhe aperta a mão é Jean Tauré de Bessat, habitante de Talence (Gironda) e incondicional admirador de Tintim.