21-11-2003
Tintim Salva Tchang e Ganha um Amigo

Carlos Pessoa

Na sua aventura chinesa, o herói desmantela um bando de traficantes, denuncia as atrocidades do exército invasor japonês e critica a acção das potências ocidentais

Na tarde de 1 de Maio de 1934, um jovem chinês de baixa estatura e boné de estudante na cabeça calcorreia as ruas de Etterbeek, nos arredores de Bruxelas. Depois de interrogar um polícia e abordar um carteiro, chega finalmente à rua Knapen. É ali que reside o casal Remi, Georges (Hergé é o seu nome artístico) e Germaine. Pouco depois, Tchang Tchong Jen e o criador de Tintim encontram- se pela primeira vez para falar sobre a China, da qual o desenhador nada sabia.

Outros encontros ocorrerão e é através destas conversas que se cimenta uma sólida amizade, que resistirá à Revolução Cultural e a mais de 46 anos de separação sem que nenhum saiba nada do que aconteceu ao outro. A admiração é, desde o primeiro momento, recíproca: Tchang fica impressionado com a habilidade de Hergé, sobretudo a facilidade com que este esboça situações e faz desenhos preliminares. O artista belga está fascinado com a cultura e a sensibilidade do oriental, capaz de sentir uma árvore ao ponto de se identificar com ela. É um pouco desta descoberta mútua que vai ser plasmada nas pranchas de “O Lótus Azul”, aventura que começa a ser publicada no “Le Petit Vingtième” (com o título de “As Aventuras de Tintim no Extremo Oriente”) a partir de 9 de Agosto de 1934.

A história termina em 17 de Outubro do ano seguinte, numa altura em que o exército comunista de Mao Tsé-Tung termina a Longa Marcha para Norte, após um ano de fuga aos nacionalistas e 12 mil quilómetros de viagem. Salvaguardadas as devidas distâncias, os dois eventos estavam condenados a tornar-se lendários. O fim da Longa Marcha é o início do processo político-militar que levará os comunistas ao poder, em 1949. Quanto à banda desenhada de Hergé, ela é o testemunho duradouro de uma viragem fundamental na vida e na obra do mestre belga. Que assim foi, eis o que podia ser pressentido ainda antes de esta história chegar ao fim da sua publicação: o rigor histórico e a exigência documental da obra não tinham agradado aos diplomatas japoneses em Bruxelas, que apresentaram um protesto formal contra o modo como o exército nipónico de ocupação da China era representado. Tchang foi o primeiro a dissipar as preocupações instaladas no espírito de Hergé: “Não tenha medo! Se os japoneses estão zangados, é porque nós dizemos a verdade.”

A verdade não reside apenas no tratamento cuidado e profissional do tema. Consiste, acima de tudo, na metamorfose total por que passou o autor belga ao realizar esta aventura. De facto, é a primeira vez que ele atinge um elevado nível de qualidade gráfica, a par de um domínio total sobre o desenho, o ritmo e a composição da narrativa — transformações que o próprio Hergé será o primeiro a reconhecer mais tarde. É a esta luz que pode ser plenamente compreendido o estado de excepção instalado na sequência em que os dois personagens (Tintim e o pequeno Tchang, através do qual Hergé faz uma óbvia homenagem ao seu “mestre” em cultura chinesa) se encontram nas margens do rio. Ou ainda a sequência final da história, em que Tintim deixa a China depois de uma despedida fortemente emotiva.

Depois de “O Lótus Azul”, Hergé torna-se um profissional que deve essa nova atitude a Tchang. Este parte precipitadamente para a China em 1935 e ambos só voltarão a encontrar-se de novo em 1981, dois anos antes da morte de Hergé. Passar- se-á muito tempo antes que Tchang possa dar-se plenamente conta da enorme influência que exerceu sobre o seu amigo ocidental. Ela está presente tanto na inclusão, na história, do personagem com o seu nome, como nas inúmeras inscrições em chinês espalhadas pelas pranchas. Uma delas é uma máxima taoísta: “O lótus é sereno porque o seu coração está vazio.”