20-11-2003
"O Lótus Azul" décimo àlbum de Tintim

Carlos Pessoa

As aventuras de Tintim na China dão a conhecer a realidade de um país e de uma civilização, escapando aos “clichés” e preconceitos até então dominantes no Ocidente

No final de “Os Charutos do Faraó”, Hergé anunciou que Tintim continuaria a sua viagem em direcção ao Extremo Oriente. Semanas depois recebeu uma carta do padre Gosset, capelão dos estudantes chineses da Universidade de Lovaina. Recomendava cuidado na abordagem do tema, sugerindolhe que se documentasse bem antes de avançar. Curiosamente, esta sugestão ia ao encontro de uma necessidade que o próprio autor já tinha identificado antes.

Gosset apresentou-lhe Tchang Tchong-Jen, estudante da Academia das Belas-Artes de Bruxelas. O choque de Hergé foi tremendo, pois foi confrontado com a enorme e profunda riqueza civilizacional de um povo que, até ntão, era visto o Ocidente soretudo através e preconceitos ideias feitas. Descobri um undo novo”, irmaria mais rde ao seu ógrafo Numa doul.

Tchang e Hersimpatizaram imediato um com o outro, mantendo longas conversas sobre a história e a geografia da China, mas também sobre a filosofia, a literatura e a arte — as informações sobre as técnicas da pintura tradicional chinesa seriam preciosas para o trabalho do desenhador. Nesse longínquo ano de 1934 nascia assim uma longa amizade que só seria desfeita com a morte — o primeiro gesto surgiria logo em “O Lótus Azul”, a banda desenhada da série Tintim que amanhã será distribuída com o PÚBLICO, onde o autor inclui o seu novo amigo chinês como personagem.

Ao ler a história (publicada pela primeira vez no “Le Petit Vingtième” entre Agosto de 1934 e Outubro do ano seguinte), o leitor comprovará facilmente a ordem de grandeza do impacto sofrido por Hergé. As debilidades narrativas e gráficas das quatro aventuras anteriores dão lugar a um sincero esforço de representação da realidade em que o autor faz mergulhar o seu herói. A partir daqui, nunca mais ele deixará de realizar um sólido trabalho de pesquisa para oferecer aos leitores um retrato tão fiel quanto possível dos assuntos, locais e situações tratados em cada história.

As preocupações documentais de Hergé são em grande medida responsáveis pela forte coloração política desta aventura, considerada a mais “militante” das bandas desenhadas de Tintim. Mas é necessário dizer também que o ambiente conturbado da época, com a guerra sino-japonesa no seu ponto mais aceso, ajudava muito. Todos os factos referenciados na história — o atentado de bandidos chineses contra interesses japoneses, a venalidade dos representantes das potências ocidentais, a arrogância dos militares nipónicos, etc. — são verídicos. Mas o mais importante é que Hergé não manifesta a mínima complacência face a estes e outros comportamentos social e eticamente desviantes.

A par desta assunção de conteúdos ideológicos para as histórias do seu herói, Hergé investe seriamente no grafismo da narrativa, nesta altura ainda a preto e branco. Assim, não surpreende que muitos vejam em “O Lótus Azul” a expressão mais apurada do estilo hergeniano da primeira fase, referenciando nomeadamente o sólido trabalho de estilização. A cor trará, mais tarde, outros atributos e o refinamento que podem ser apercebidos a partir de amanhã.