07-11-2003 Tintim corre mundo para encontrar o tesouro do terrível Rackham, que, afinal, sempre estivera debaixo do seu nariz. Haddock compra um castelo e ganha um mordomo Em Fevereiro de 1943, os alemães perdem a batalha de Estalinegrado. A rendição do general von Paulus soa como um toque de finados antecipado pela aventura totalitária de Hitler e seus seguidores. Nesse mesmo mês, o jornal belga “Le Soir” dá início a uma nova aventura de Tintim — ficará depois conhecida como “O Tesouro de Rackham, o Terrível” — que dura sete meses. Nesta história, Hergé acrescenta novos personagens à série: o mordomo Nestor, o próprio castelo de Moulinsart e, num lugar à parte, o professor Girassol. A invenção deste cientista surdo, distraído, desajeitado e completamente desligado da realidade não é uma proeza por aí além. De facto, esta era uma imagem dos cientistas muito difundida na época. O que há de notável no gesto de Hergé é a associação para todo o sempre de Girassol a Haddock — o primeiro nunca ouve o que lhe dizem (excepto quando tem o aparelho acústico ligado), enquanto o segundo nunca se cala e lança impropérios a torto e a direito. Fica, assim, dado o mote para o aparecimento de uma delirante torrente de mal-entendidos e confusões de toda a espécie, que Hergé desenvolve sem a menor inibição a partir desta primeira aparição de Girassol: Haddock com a barba presa no escafandro, este último transformado num odre de água com o capitão dentro, um Dupont que mergulha sem as sapatas de chumbo e fica de cabeça para cima, um tubarão embriagado com uma garrafa de rum, papagaios na ilha que repetem as exclamações do antepassado do capitão... O convite ao sonho, à aventura e à evasão, que foi formulado na primeira aventura deste ciclo (“O Segredo do Licorne”), prolonga-se nesta segunda parte, na qual o autor dá expressão visual e gráfica ao universo literário concebido por criadores como Júlio Verne, Stevenson ou Conrad. Paradoxalmente, esta é também a BD em que os heróis vão encontrar a sua residência permanente entre duas histórias — o castelo de Moulinsart que, por vezes, é também palco de peripécias. Curiosamente, na mesma altura, Hergé comprava para uma propriedade perto de Bruxelas, em Céroux-Mousty. A partir de agora, Hergé terá de encontrar uma solução de compromisso permanente entre a fixação dos heróis num espaço pessoal (aquilo que a palavra inglesa “home” tão bem exprime) e o apelo ao exotismo e à viagem, que desempenha um papel fulcral na economia da série. É um desafio que ele ganha inteiramente, como se verá nas aventuras seguintes de Tintim. “O Tesouro de Rackham, o Terrível” não pode ser entendido em toda a sua dimensão sem “O Segredo do Licorne”, distribuído com o PÚBLICO na semana passada. Os analistas realçam o facto de este díptico constituir uma viragem importante na obra de Hergé — não tanto pela dinâmica de “pura aventura” que impregna as duas histórias, surgidas num momento histórico de guerra total em que o autor não podia escolher livremente os temas, mas porque é a primeira vez que Tintim não é movido por um imperativo de natureza social. De facto, tudo acontece em função da necessidade de Haddock resolver o problema matricial da sua identidade pessoal, missão que não traz qualquer proveito pessoal para o próprio herói. Será por isso que esta é a banda desenhada mais vendida de Hergé? O próprio autor não saberia responder. Em contrapartida, tinha plena consciência, e orgulhava-se disso, de que fora capaz de tirar partido de um enredo que considerava “excessivamente fraco”.![]() |