31-10-2003
Tintim e Haddock procuram um tesouro
Carlos Pessoa

Aventura, perigo e muita acção fazem de “O Segredo do Licorne” uma caça ao tesouro que continua a fascinar gerações de leitores

Um quadradinho solitário publicado no “Le Soir” anuncia a boa nova aos leitores: Tintim pede um mês de licença sem vencimento para preparar a caça ao tesouro de Rackham, o Terrível.

E assim acontece nesse princípio de Junho de 1942. Hergé parece possuído por uma fúria criadora, encadeando as histórias umas atrás das outras e, simultaneamente, ocupando-se das reimpressões de aventuras antigas que o obrigam a regressar a personagens e situações há muito afastadas do seu espírito.

Quem ler “O Segredo do Licorne” (publicado entre 11 de Junho de 1942 e 14 de Janeiro de 1943) à procura de referências ao momento histórico em que ela surgiu ficará desiludido. Nada transpira dos tempos conturbados que se vivem no planeta nesta aventura em que Hergé irá levar o seu herói até ao almejado tesouro. De facto, a influência de Robert Louis Stevenson é evidente, respondendo em pleno aos desejos de evasão dos leitores do jornal, que aliás é lido nas prisões e nos campos de concentração. O autor conta com a preciosa ajuda de Gérard Liger-Belair, secretário da Federação dos Escuteiros Católicos, fanático por barcos e filho de um antigo oficial da marinha de guerra francesa. É ele quem vai realizar todas as pesquisas, nomeadamente as que permitiram criar o Licorne a partir da informação disponível relativa ao “Brillant” e ao “Soleil Royal”, vasos de guerra de Luís XIV. No entanto, e apesar das preocupações de rigor manifestadas por Hergé na realização desta banda desenhada, os especialistas encontrarão algumas anomalias no modelo do Licorne, como a má distribuição das peças de artilharia...

O que conta, porém, é a aventura e essa está presente desde a primeira prancha, combinando e entrelaçando linhas narrativas distintas — a par da busca dos pergaminhos que permitirá localizar os destroços do navio e o tesouro do antepassado de Haddock, Tintim tem de se haver com uns misteriosos furtos de carteiras, cuja recuperação pelos desastrados Dupond(t) permitirá solucionar o problema anterior. Estas soluções revelam um autor no apogeu da sua maturidade, manipulando com mestria ingredientes e referências gratas aos seus leitores. Por trás das movimentações de Tintim e da agitação febril de Haddock, o leitor vislumbra os fantasmas da epopeia marítima, com os seus piratas e flibusteiros, viagens acidentadas, tesouros ocultos ou exílios em ilhas perdidas na imensidão dos mares.

Face à evolução preocupante da guerra na frente russa, à iminência de uma batalha decisiva entre os exércitos de Rommel e Montgomery em El Alamein (Norte de África) e ao previsível agravamento da situação social e económica da população, a evasão e o sonho propostos por Hergé aos seus concidadãos vinham a calhar.