30-10-2003 Enquanto a Segunda Guerra Mundial continua a devastar o planeta, Hergé trabalha, com a sua habitual energia, num tema clássico da BD de aventuras: a caça ao tesouro Em 11 de Junho de 1942 começa uma nova aventura de Tintim no jornal “Le Soir”. À razão de uma tira por dia, Hergé leva ainda mais longe o propósito, já expresso na história precedente (“A Estrela Misteriosa”, distribuída na semana passada), de tratar temas sem qualquer ligação com a actualidade. Com a Bélgica ocupada pelos exércitos alemães, uma simples deslocação para fora do local de residência é praticamente impossível. Por isso, não deixa de ser irónico que Tintim vá mergulhar por inteiro numa caça ao tesouro. É esse o tema de “O Segredo do Licorne”, que se completa com “O Tesouro de Rackham, o Terrível”, a pôr à venda na próxima semana com o PÚBLICO. Hergé volta a surpreender, pela positiva, os seus leitores. Através de uma abordagem vincadamente pessoal, começa por se consagrar aos preparativos da viagem — na maior parte das vezes esta fase não merece a menor atenção da parte dos criadores — que Tintim e Haddock vão empreender para encontrar o tesouro do antepassado do velho marinheiro. Todo o conteúdo do presente álbum e a parte inicial do seguinte são dedicados a essa tarefa, levada a cabo com um engenho assinalável. Com efeito, Hergé constrói a narrativa a partir de três histórias que se desdobram no interior da própria aventura, para voltarem a juntar-se no final do álbum (do mesmo modo que a justaposição dos três pergaminhos permitirá obter as coordenadas do local onde se encontram os despojos do Licorne). O primeiro fio condutor da aventura, que é também o mais óbvio, é o que narra a persistente acção de Tintim para encontrar os três modelos do navio e os seus misteriosos proprietários. A par disso, Hergé coloca em cena uma investigação em torno de furtos maciços de carteiras, realizada — com a proverbial eficácia e argúcia… — pelos inenarráveis irmãos Dupond(t). Aparentemente, este elemento narrativo nada tem a ver com o tema central da aventura, mas tudo se explica lá mais para diante, quando Tintim descobre dois dos pergaminhos numa das carteiras recuperadas pelos polícias. O terceiro eixo narrativo, e também o mais original, é a narração por Haddock das proezas do seu antepassado, o famoso Cavaleiro Francisco de Hadoque. Através de uma notável sequência de 13 pranchas, o capitão ganha uma espessura até então inexistente, consagrando-se a partir daqui como o companheiro e cúmplice do herói em todas as aventuras que ainda irão viver. É de referir ainda que este personagem é o único em toda série a poder reivindicar para si um passado e uma história pessoal. Não querendo repetir erros anteriores, Hergé efectua
um exaustivo trabalho documental que lhe permite desenhar o Licorne com
uma precisão que não passará despercebida aos seus
leitores. Sem corresponder a nenhum navio específico, este vaso
de guerra é uma reprodução fiel dos navios usados
pela marinha francesa no século XVII. Não admira que assim
seja, pois o autor utilizou como principal modelo o “Le Brillant”, construído
nos estaleiros do Havre em 1690, ao qual Hergé pede emprestados
os motivos decorativos do arquitecto Jean Berain, a quem o rei Luís
XIV incumbiu de desenvolver e homogeneizar o “design” naval da frota
francesa da época. |