24-10-2003 “A Estrela Misteriosa” retrata de forma admirável o ambiente apocalíptico em que a Europa estava mergulhada. Isso valeu-lhe acusações de anti-semitismo e simpatias pelo nazismo No Outono de 1941, os judeus residentes na Bélgica já são cidadãos de segunda. Estão proibidos de exercerem a advocacia, de serem funcionários públicos, professores ou jornalistas. Confinados a quatro cidades (Anvers, Bruxelas, Liège e Charleroi), não estão autorizados a sair de casa entre as 8 da noite e as 7 horas da manhã. É neste clima, num continente em guerra e em grande parte ocupado militarmente pela Alemanha nazi, que começa a ser publicada “A Estrela Misteriosa”, no jornal “Le Soir”. E muito rapidamente se perceberá que Hergé escolheu um judeu — Blumenstein — para “mau da fita”, no papel de patrocinador da expedição polar que concorre com a de Tintim. O autor justificar-se-á mais tarde, afirmando que “era uma moda”, mas a verdade é que tal explicação não impediu os seus detractores de o acusarem de anti-semitismo. Mas há outras razões para pôr em causa as convicções político-ideológicas de Hergé na época. Com efeito, ao associar os adversários de Tintim aos americanos prestes a entrarem na guerra ao lado dos Aliados (como o testemunha a bandeira da chalupa que tenta chegar ao aerólito, substituída na versão da história publicada após a guerra pela de um fictício Estado de S. Rico), o autor coloca-os na condição de derrotados. Não é Tintim o primeiro a chegar ao aerólito, apoiado por cientistas de países alinhados com a Alemanha ou neutrais?... Reduzir esta banda desenhada à sua dimensão política seria, sem dúvida, injusto. Alargando um pouco a grelha de leitura, pode ver-se em “A Estrela Misteriosa” um braçode- ferro entre a crença religiosa e a certeza científica. Mas também se poderia enfatizar a importância do fantástico na economia narrativa — cogumelos, maçãs e aranhas gigantes, por exemplo — ou explorar a simbólica ligada à presença de aracnídeos na história. Sejam quais forem os caminhos percorridos pelo leitor, ressalta nesta aventura uma atmosfera apocalíptica bem visível desde as primeiras pranchas — metáfora dos tempos difíceis que se viviam na época. O anúncio — precipitado, como se verá logo a seguir — do fim do mundo prolonga-se depois no ambiente angustiado e alucinado que contagia todos os personagens. Com efeito, o sofrimento e morte de milhões de pessoas na frente leste da guerra não estão muito longe, tal como a sorte que espera os judeus em todos os países ocupados do Velho Continente. Aliás, seis dias após o fim desta aventura (21 de Maio de 1942), a estrela amarela identificadora dos judeus será decretada… Naquela que é considerada em muitos quadrantes como a mais politicamente comprometida das aventuras de Tintim no período da ocupação alemã, Hergé parece pouco preocupado com o rigor e sentido do real que se tornaram uma imagem de marca — o aerólito nunca poderia flutuar, um cometa ou um asteróide não geram a onda de calor anunciada nas primeiras páginas da história, etc. O seu biógrafo Pierre Assouline adianta uma explicação: “Hergé tem
o direito a ser exacto ou inexacto ao sabor da sua fantasia e da sua inspiração.
Um criador tem todos os direitos, para mais se é um artista. Ele
não conhece outros limites que os que são fixados pela sua
imaginação e pela sua consciência.”
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