17-10-2003
Quem Roubou as Jóias da Diva?
Carlos Pessoa

Uma vez sem exemplo, a mulher tem um papel central numa história de Tintim. E que mulher ela se revela, esta opulenta e historiónica Castafiore, que quase põe Haddock louco...

Aos 54 anos, Hergé acaba de fazer a melhor história da sua vida ("Tintim no Tibete") e superar uma grave crise pessoal. O que mais pode desejar um homem que está no apogeu da sua carreira?

A resposta do criador de Tintim está à medida do seu espírito empreendedor. Como gosta de correr riscos, Hergé avança para uma nova história sem bons ou maus, sem violência ou conflito reais, sem mistérios a decifrar ou perigos a correr. O resultado é "As Jóias de Castafiore", publicada pela primeira vez na revista "Tintin" (edição belga) entre 4 de Julho de 1961 e 4 de Setembro de 1962.

O "atrevimento" de Hergé, que surpreenderá muitos dos seus leitores, nada tem de diletante ou impertinente. É, muito simplesmente, um legítimo exercício de ironia e humor, através do qual brinca com tudo e com todos, a começar por si mesmo. Ou, como escreve Pierre Assouline na biografia consagrada ao criador de Tintim, Hergé entrega-se a uma "doce loucura".

Ao contrário do que é habitual nas diversas aventuras, os heróis não correm mundo, nem visitam locais exóticos. Moulinsart, onde Haddock repousa entre duas aventuras, é o espaço onde tudo (não) acontece nesta banda desenhada. Mas como é necessário insuflar vida na narrativa e imprimir dinamismo à história, o autor obriga as suas personagens a um corrupio permanente no espaço fechado da residência, aqui e ali com incursões pelos jardins envolventes.

O universo de Tintim é essencialmente masculino. Mas, por uma vez - que será também a última -, é uma mulher quem ocupa a boca de cena. Blanche Chastefleur, mais conhecida por Castafiore, é a personagem em torno da qual flui a acção. As acusações de misoginia dirigidas a Hergé encontram nesta visão da mulher uma incontestável confirmação. O autor defendeu-se sempre, dizendo que as mulheres não poderiam ficar a coberto do seu propósito de sátira social. Por outro lado, é verdade que Hergé sempre se recusou a introduzir uma dimensão amorosa nas histórias de Tintim. De facto, o universo da série organiza-se incontestavelmente em torno de "amizades viris" (Pierre Assouline), o que é por si só de molde a tornar deslocada qualquer mulher. E é isso, afinal, o que acontece claramente em "As Jóias de Castafiore", onde a exuberância e a tagarelice do Rouxinol Milanês só encontram correspondência à altura no egocentrismo e ignorância que evidencia a par e passo.

O que acontece ao longo das 62 pranchas do álbum? Em rigor, é difícil de dizer, tão atípica e sem aventura é esta banda desenhada onde, paradoxo dos paradoxos, muitas coisas acontecem... Um degrau da escadaria em que toda a gente tropeça, mas que nunca é arranjado, jóias que desaparecem sem ter sido roubadas, ciganos que são suspeitos de furto, mas nunca acusados, personagens que falam entre si, mas nunca se entendem, e tudo o que cada leitor souber encontrar no álbum.

O impacto da banda desenhada foi enorme, tanto em termos de público, como nos meios académicos. Ainda Hergé era vivo, quando a muito respeitável revista "Critique" publicou, em 1970, um artigo sobre este álbum, assinado pelo filósofo Michel Pierre. A consagração definitiva, porém, só viria postumamente, quando Benoît Peeters (argumentista, entre outras obras, do ciclo As Cidades Obscuras, com desenho de François Schuiten) publicou em 1984 "Bijoux Ravis", um vibrante ensaio sobre esta excepcional e brilhante história.