16-10-2003 História quase sem história, eis a mais delirante, cómica e absurda de todas as aventuras do jovem repórter criado por Hergé Quantas vezes a Castafiore chama o capitão Haddock por um nome errado? Ao todo são 29, mas só em “As Jóias de Castafiore”, o álbum que amanhã será posto à venda com o PÚBLICO, o velho marinheiro conhece 16 nomes diferentes. Entre outros, Bartock, Kapock, Mastock, Hammock, Karbock, Hoclock, Hablock, Maggock, Medock, Kapstock… É obra! Esta deliciosa troca de nomes é apenas um pormenor, mas dá uma ideia bem exacta do nível de delírio a que Hergé eleva as suas personagens naquela que é considerada a mais cómica e absurda de todas as aventuras. Esta história, cuja publicação se iniciou em 4 de Julho de 1961 na revista “Tintin”, sucede a “Tintim no Tibete”, onde a dimensão onírica e afectiva terá porventura atingido o mais alto expoente. Talvez por isso, seria de esperar que Hergé regressasse a territórios mais conhecidos e seguros. Quem estava à espera de uma aventura de recorte clássico enganou-se redondamente. É claro que todos os elementos marcantes da série estão presentes. A grande diferença em relação a trabalhos anteriores é que os aspectos mais inconformistas do trabalho de Hergé – que, de certa forma, ele reservou para as diabruras de Quick e Flupke, os dois putos traquinas de Bruxelas da série com o mesmo nome – emergem com um vigor assombroso. Tintim é sinónimo de aventura e de viagem, mas neste álbum os heróis nunca abandonam o Castelo de Moulinsart, residência de Haddock. Quando muito, circulam de um lado para o outro do edifício, por vezes com passagem pelos jardins da imensa propriedade. Outro sinal irrefutável da mestria de Hergé consiste na extrema depuração da narrativa. No limite, poder-se-ia dizer que “As Jóias de Castafiore” é uma história… sem história. Mais: o autor desafia as convenções dos quadradinhos ao baralhar-nos deliberadamente com indícios e caminhos que levam a lado nenhum. É verdade que as jóias da diva desaparecem e que esse mistério é o fulcro da acção, que se desenvolve numa sucessão de pistas e falsas pistas para culminar com um falso roubo. Também nesse ponto, o autor se diverte com os leitores, colocando no banco dos réus… uma pega. As personagens habituais não escapam a este verdadeiro “descalabro”. Castafiore, que tem nesta banda desenhada os seus 30 segundos de glória, é afinal igual a si própria, narcisista, egocêntrica e dominadora — numa palavra, deliciosamente patética. Os Dupond(t) não lhe ficam atrás, multiplicando os disparates. Haddock, imobilizado numa cadeira de rodas por um deplorável acidente, é um anti-herói que atinge os píncaros da adversidade, implacavelmente sujeito aos caprichos do destino. Por fim, Girassol é o agente involuntário – como sempre … — do clímax delirante da história, ao oferecer aos seus interlocutores uma demonstração das potencialidades da televisão a cores. Acontece que todas as perturbações sonoras e visuais que invadem o pequeno ecrã culminam numa desregulamentação gráfica total, expondo o grafismo “certinho” e “limpo” de Hergé a rude prova. Suprema ironia: aquele que é um dos episódios
menos conhecidos e citados teve um êxito extraordinário
junto da crítica. Os leitores do PÚBLICO têm amanhã uma
oportunidade de ouro para perceberem as razões desse caloroso
acolhimento.
![]() |