10-10-2003
O Como Tintim salva o reino da Sildávia

Carlos Pessoa

Depois da Escócia, Tintim está nos Balcãs. É nesta zona da velha Europa que se situa a acção da aventura desta semana, “O Ceptro de Ottokar”.

Hergé opta por situar a acção num contexto histórico imediato. Existem dois países de fronteira comum com regimes políticos diferentes — a Bordúria é uma ditadura e a Sildávia uma monarquia moderna — e o papel do herói é fazer abortar uma tentativa de anexação do segundo país pelo primeiro. A pedra-de-toque é o famoso ceptro de Ottokar IV, símbolo do poder real, que os sucessores do monarca têm de exibir no desfile do dia de S. Vladimiro, patrono da Sildávia.

A publicação da história termina em 10 de Agosto de 1939, no jornal “Le Petit Vingtième”. Vinte dias mais tarde, os blindados alemães invadem a Polónia. Pode dizer-se que poucas vezes uma simples banda desenhada de aventuras esteve tão sincronizada com a História viva. Hergé, que gosta de articular o seu herói com acontecimentos reais, tinha uma aguda percepção do que estava em jogo. Prova disso é uma carta enviada em Maio de 1939 ao seu editor, quando esta aventura ainda estava a ser publicada, onde insiste na necessidade de editar o álbum até ao final do ano.

Sob vários pontos de vista, “O Ceptro de Ottokar” assinala um salto qualitativo na obra de Hergé. Antes de mais, porque ele inventa de forma consistente um país, com a sua história e língua próprias. Da primeira, proporciona um breve resumo aos leitores através da reprodução de uma brochura no interior da própria história. Quanto à segunda, o autor diverte-se a jogar com as palavras e a criar neologismos que melhor sustentem a verosimilhança do enredo. Todavia, a questão fulcral da banda desenhada é de natureza política — o regime político da Bordúria é fascista ou comunista? O nome de Müsstler, o temível dirigente da Bordúria, é uma síntese de Mussolini e Hitler, mas há nele ressonâncias de Oswald Mosley (dirigente da extrema-direita inglesa) e do seu homólogo holandês, Anton Mussert. Para baralhar um pouco mais as pistas, Müsstler é o chefe máximo de uma Guarda de Aço, o que faz pensar na Roménia (Balcãs), onde o ultranacionalista e anti-semita Corneliu Codreanu criou em 1927 uma “Legião do Arcanjo Miguel”, depois transformada em Guarda de Ferro. Apesar de tudo isto, no contexto da Europa nos anos de 1938-39, a tentativa de anexação da Sildávia pela Bordúria dificilmente pode deixar de ser associada à actuação da Alemanha face aos seus vizinhos.

Mas a resposta à questão colocada mais atrás não é assim tão fácil como se poderia pensar. Hergé não é definitivamente um homem de esquerda e a sua reputação nos meios católicos ultraconservadores é bem conhecida. Por isso, é interessante a explicação que o autor belga daria anos mais tarde: “Tintim não é o defensor da ordem estabelecida, mas o defensor da justiça e o protector das viúvas e dos órfãos. Se ele corre em defesa do rei da Sildávia, não é para salvar o regime monárquico mas para impedir uma injustiça: aos olhos de Tintim, o ‘mal', aqui, é o roubo do ceptro.”

Na sua biografia de Hergé (Gallimard, 1996), Pierre Assouline resume bem a situação: “Esta história terá permitido a Hergé mostrar que mesmo em pleno crescendo dos perigos Tintim continua a ser sempre um escuteiro. Traduzido na linguagem política, isso quer dizer ‘neutro'. Aliás, essa é a tendência para a qual Georges Remi [Hergé] se inclina cada vez mais.”