09-10-2003 O começo da história é simples e anódino, como em muitas outras aventuras de Tintim: ao dar um passeio na companhia de Milu, o herói pega numa pasta que alguém esqueceu no banco de um jardim público. Ao fazê-lo, está muito longe de imaginar que isso o vai ligar a uma gigantesca conspiração, que envolve a Bordúria contra o governo legítimo da Sildávia. Bordúria? Sildávia? Tais países não têm existência real, como toda a gente sabe. Mas o desenvolvimento da própria história permite perceber que Hergé recorreu a uma metáfora para falar, sob a forma ficcional, de eventos ocorridos alguns meses antes de a história começar a ser publicada no jornal “Le Petit Vingtième”, a 4 de Agosto de 1938. Alguns meses antes, a Áustria fora invadida pelas tropas alemãs. No dia 13 de Março, Hitler proclama a anexação do país, que se torna a mais recente província do III Reich. Inspirando-se nestes factos mas desejando ao mesmo tempo manter alguma distanciação relativamente a eles, Hergé vai contar aos seus leitores a história de uma anexação falhada. De um lado está a Bordúria, que a vários títulos faz pensar na Alemanha nazi (os uniformes, os aviões, o líder Müsstler, síntese de Hitler com Mussolini, etc.). Do outro está a pequena e simpática Bordúria, uma monarquia constitucional moderna, dirigida por um rei carismático, Muskar XII, mas sem capacidade para resistir às ambições expansionistas do poderoso vizinho. Ou, se quisermos, “essa Bélgica disfarçada de país eslavo”, como observou o crítico François Rivière. A invenção de um país, em cujos destinos Tintim vai intervir de forma determinante, obriga Hergé a dar-lhe uma existência — que é como quem diz uma história — credível aos olhos dos leitores. A solução, engenhosa, consiste em integrar na banda desenhada o conteúdo de uma brochura (três pranchas) que Tintim lê durante a viagem de avião para a Sildávia. Constam dela outros elementos informativos que irão ganhar em seguida uma redobrada importância na economia desta aventura, e em especial o significado simbólico do ceptro de Ottokar, que dá o título à história. À margem dos graves acontecimentos políticos que quase
custam a vida ao nosso herói, “O Ceptro de Ottokar” fica para
a posteridade por outra razão. É nesta história
que pela primeira vez aparece Bianca Castafiore, cantora lírica
do Scala de Milão. De momento, o “Rouxinol Milanês” limita-se
a cruzar o caminho de Tintim, ajudando-o involuntariamente a escapar à perseguição
da polícia. Mas irá, futuramente, ganhar uma importância
que nem o próprio Hergé estava em condições
de suspeitar no momento em que a criou. Quem não aprecia sobremaneira
este primeiro contacto com a diva — Castafiore é a única
mulher com importância no universo quase exclusivamente masculino
da série — é Tintim. E não é caso para menos,
pois quase não sobrevive à primeira audição
ao vivo do trecho do “Fausto” que a imortalizará: “Rio por me
ver tão b-e-e-e-la neste espelho…” |