03-10-2003
Tintim desvenda o mistério do castelo escocês

Carlos Pessoa

À parte o “kilt” e a boina escocesa, é sem exotismos mas com muita aventura que Tintim vai até à Escócia e deslinda os segredos da ilha Negra. Não dá de caras com o monstro de Loch Ness, mas enfrenta um bando de falsários e ganha um amigo… o gorila Ranko

Depois de uma acidentada viagem à América do Sul (“A Orelha Quebrada”), Tintim regressa à boa e velha Europa. A Escócia é o cenário escolhido por Hergé para situar esta nova aventura do seu herói. “A Ilha Negra”, publicada pela primeira vez em 1937-38 no jornal belga “Le Petit Vingtième”, é uma banda desenhada de características puramente policiais. Ou seja, o autor resiste liminarmente à tentação de exotismo — se excluirmos a circunstância de Tintim ser obrigado a trajar um “kilt” quando fica com a roupa em tiras, mas conservando a sua sacramental camisola azul —, para se concentrar por inteiro no desenvolvimento de uma intriga que põe em evidência a reconhecida capacidade do mestre para dominar a arte da narrativa.

Os analistas da obra de Hergé destacam a originalidade desta BD, assente na articulação feliz de dois universos, aparentemente incompatíveis: o das modernas tecnologias da época (referência à televisão ainda em fase embrionária de desenvolvimento, os equipamentos de reprodução tipográfica, a aviação) e o de uma certa cultura popular, recheada de elementos mítico-fantásticos (a ilha misteriosa, o castelo em ruínas, a fera obscura…). Ao cruzar de forma hábil estes dois mundos, Hergé prova de forma prática que velhos fantasmas e receios ancestrais, sólida e profundamente incrustados no inconsciente colectivo da humanidade, podem ser operacionalizados para fins menos nobres. No caso, é um bando de falsários que tira partido da aura de mistério e medo que rodeia as ruínas do castelo de Ben More para levar a cabo os seus desígnios criminosos. Aliás, o próprio líder do bando, o “energético” dr. Müller, assinala a aparição na série de um novo tipo de criminoso, até então ausente (ler caracterização do personagem por Hergé).

Como sucedeu com outras aventuras, “A Ilha Negra” sofreu profundas alterações ao longo do tempo. No entanto, é a única BD que conheceu três versões diferentes. Depois da publicação em “Le Petit Vingtième”, a história foi editada em álbum pela Casterman no final de 1938, com um total de 124 pranchas a preto e branco. Alguns anos depois (1943), na passagem da história a cores, o mesmo editor publicou uma segunda edição de 62 páginas, que, apesar de tudo, apresentava poucas alterações significativas em relação à primeira edição.

A história, tal como a conhecemos hoje, foi totalmente redesenhada por Hergé em 1965. As razões que levaram o autor a regressar a esta BD são meramente circunstanciais: quando o editor inglês de Tintim quis publicar “A Ilha Negra”, que nunca fora traduzida, deparou-se com dois problemas. Um deles consistia no elevado número de erros de pormenor, relativamente à realidade britânica, que era necessário corrigir. Outro dizia respeito ao incontestável envelhecimento da BD, não fazendo muito sentido publicar uma história tão datada quando os leitores ingleses já tinham ao dispor aventuras mais “modernas”, como “O Caso Girassol” ou os dois volumes da expedição lunar.

Hergé aceitou o repto e enviou o seu então colaborador Bob de Moor ao Reino Unido com uma lista de erros a corrigir. O autor aproveitou ainda para modernizar tudo o que passara de moda — fatos dos bombeiros, automóveis, vestuário, etc. — e mexer na cor. O resultado final é uma “A Ilha Negra” completamente nova, aquela que os leitores do PÚBLICO podem adquirir a partir de hoje.