02-10-2003
"A Ilha Negra", terceiro álbum das aventuras de Tintim, com o Público

Carlos Pessoa

O famoso repórter troca as calças de golfe pelo “kilt” e enverga uma boina escocesa. Na companhia de Milu, Tintim desloca-se até ao Norte da Escócia para combater um bando de falsários que aterroriza a região de Kiltoch

Em 1937, a guerra civil de Espanha arrasa o país e divide as opiniões públicas europeias. Um pouco alheio a estes dramáticos acontecimentos, Hergé está afogado em compromissos profissionais, dividindo-se entre os trabalhos publicitários e a realização das aventuras dos seus heróis — Quick e Flupke por um lado, Jo, Zette e Jocko por outro. Tintim e Milu (o capitão Haddock só surgirá alguns anos mais tarde), por seu turno, preparam-se para uma viagem até à Escócia, onde enfrentarão um bando de falsários.

Ainda sem o nome com que viria a ser conhecida (“A Ilha Negra”), esta banda desenhada começa a ser publicada, a preto e branco e com o título genérico de “As Novas Aventuras de Tintim e Milu”, no jornal “Le Petit Vingtième” a 15 de Abril de 1937, concluindo-se em 16 de Junho de 1938. Quando começa a ser divulgada em França na revista “Coeurs Vaillants” chama-se “O Mistério do Avião Cinzento”, mas ostentará outros títulos — “Na Pista do Mistério”, “Tintim e o Mistério do Avião Cinzento” — até à adopção do nome definitivo na primeira edição em álbum, em 1938, pelas Éditions Casterman.

“A Ilha Negra” é uma história de recorte puramente policial, que confirma a inclinação do autor por temas de actualidade — a impressão e distribuição de moeda falsa era tema recorrente da imprensa desde os anos 20. Tintim está desde as primeiras pranchas na pista de um bando chefiado pelo dr. J. W. Müller, um nome que poderá ter-se inspirado no de Adolfo Simões Müller, director de “O Papagaio” (foi a primeira publicação portuguesa a divulgar as aventuras do herói), com quem Hergé manteve correspondência.

Ao seguir as pistas deixadas pelos malfeitores, o herói chega a Kiltoch, no Norte da Escócia. Tintim troca as suas inconfundíveis calças de golfe por um “kilt”, tapa o topete com uma boina escocesa e dirige-se, apenas acompanhado de Milu, para as ruínas do castelo de Ben More, na ilha Negra, onde várias pessoas desapareceram sem deixar rasto. A influência do filme “King Kong”, que conhecera um enorme sucesso mundial em 1933, leva-o a introduzir na história um monstruoso gorila, no caso bem mais temível do que o mítico monstro do Loch Ness…

Ainda a BD estava a ser divulgada semanalmente na imprensa e já Hergé estudava soluções novas para a edição em álbum. Daí a necessidade, entre outras razões, de encontrar um título que “vendesse” a aventura, cuja versão a cores, praticamente sem alterações, só surgirá em 1943 (também pela Casterman). O editor tinha acabado de adquirir um novo e revolucionário equipamento de reprodução (o “offset”), mas o resultado não agrada inteiramente a Hergé, cujas indicações técnicas não são totalmente respeitadas — a colocação das pranchas a cores está subordinada a imperativos de dobragem das páginas e não às exigências da narrativa, o nome de Hergé não aparece por baixo da frase “As Aventuras de Tintim, Repórter”, a má qualidade do papel transforma as cores em borrões. Por isso, não espanta que o autor, ao receber o primeiro álbum de “A Ilha Negra”, o classifique com “bom” e não com “muito bom”…