26-09-2003
Tintim explora a Lua

Carlos Pessoa

No silêncio lunar, entre saltos fantásticos e a descoberta de água gelada, os heróis desmascaram os seus inimigos e regressam com êxito à Terra. Mas não ganham para o susto…

Com a descoberta dos estapafúrdios Dupond(t) a bordo do foguetão que transporta Tintim e os seus companheiros para a Lua, coloca-se desde o início um problema grave: as reservas de oxigénio não foram calculadas para uma tripulação tão numerosa e o regresso à Terra sãos e salvos pode estar comprometido.

Se a primeira parte da aventura, distribuída na semana passada com o PÚBLICO, é marcada pela sequência, absolutamente deliciosa, dos “gags” que animam a preparação da expedição lunar – e, entre todos eles, destacam-se os que têm Haddock como protagonista –, este segundo episódio, “Explorando a Lua”, desenrola-se sob o signo da tragédia.

Cabe a Wolff, uma personagem singular e a todos os títulos invulgar na galeria hergeniana, proporcionar a resolução do problema. No sentido clássico da aventura, é mais uma vítima do que propriamente um “mau”. De facto, o engenheiro é uma criatura torturada que permitiu que a sua paixão pelo jogo e o correspondente endividamento pudessem ser utilizados contra si. Uma vez descoberto, decide suicidar-se para permitir que os seus companheiros sobrevivam.

Este derradeiro gesto redentor, curiosamente, é muito mal recebido pelos meios católicos conservadores quando a aventura é publicada na revista “Tintin”. Compreende-se esta reacção: Wolff encarna o arquétipo da ambiguidade, pois não está inteiramente no campo dos “maus” mas também não se revê no campo dos bons. É um indivíduo dividido por dilemas interiores e bloqueios de consciência que o ultrapassam – nesta caracterização do personagem e no desenvolvimento da situação verão alguns analistas da obra de Hergé um significativo paralelo com a própria condição do artista, mergulhado numa depressão profunda que é, de momento, insolúvel.

É difícil de aceitar por muitos que uma personagem inconstante e, para todos os efeitos, negativa seja capaz, num assomo de dignidade, de sacrificar-se pelos seus semelhantes. Daí a solução de compromisso aceite por Hergé, expressa nas palavras finais da carta de Wolff (ver diálogo do autor com Sadoul sobre este ponto), deixando em aberto uma inverosímil possibilidade de sobrevivência que afastasse do espírito dos leitores a ideia de que se tratava, de facto, de um suicídio.

Polémicas à parte, a verdade é que a aventura lunar de Tintim não será tão bem recebida pelos leitores como as anteriores. Hergé também não se manifestará particularmente entusiasmado com o resultado final, o que fica bem expresso, aliás, nas palavras do seu “alter-ego” de circunstância, Haddock. Com efeito, na última prancha da banda desenhada, ao estatelar-se ao comprido, afirmará que “não se está verdadeiramente bem senão na nossa velha Terra”…

Como muitas vezes acontece, o reconhecimento pleno só virá mais tarde, na sequência da missão Apolo que levará o astronauta norte-americano Neil Armstrong a ser o primeiro homem a pôr os pés na Lua. Em 1982, o astrónomo Jean Meeus escreve a Hergé, dando-lhe conta da sua proposta de que o pequeno planeta número 1652, descoberto em 1953 pelo Observatório de Uccle, seja baptizado com o nome de Tintim. E o mesmo acontecerá com o asteróide número 1683, descoberto em 1950 e baptizado com o nome de Castafiore…