Spirou – o paquete que nasceu herói de BD
Por Carlos Pessoa
No dia 21 de Abril de 1938 nasciam a revista “Spirou” e o personagem com o mesmo nome. Uma e outro nasceram sob uma boa estrela, atravessando na crista da onda a maior parte do século XX e uma Guerra Mundial. O paquete tornado herói da banda desenhada teve mais sorte do que o seu concorrente Tintin, pois conheceu a renovação e continua a viver novas aventuras que o façam ter pelo menos mais 70 anos de sucesso.
A meio da década de 30, quando a Primeira Guerra Mundial já tinha vitimado milhões de homens nas trincheiras e outra estava a germinar na Alemanha, o francês Robert Velter (1909-1991) ganhava a vida como animador a bordo do transatlântico “Île-de-France”, depois de ter começado como “groom” ao serviço dos navios que garantiam as ligações entre a Europa e a América do Norte.
Numa dessas travessias conhece Martin Branner, desenhador e argumentista norte-americano que criou a série Winnie Winkel. Velter mostra-lhe alguns desenhos pessoais e torna-se assistente do americano. Passa dois anos nos Estados Unidos, mas regressa a França em 1936, onde enceta carreira como autor de bandas desenhadas.
Dois anos depois surge a grande oportunidade da sua vida, quando o editor belga Jean Dupuis o desafia a criar um personagem – cujo objectivo era rivalizar com Tintin – para uma revista que estava prestes a lançar. Assim surge Spirou, o jovem herói de cabelo ruivo, fato vermelho com botões dourados e chapéu redondo, em homenagem aos seus tempos de juventude.
As primeiras aventuras são, como sublinha o crítico Henri Filippini, “simplistas, engraçadas e ingénuas”. A guerra chega entretanto e Velter, que assinava com o nome artístico de Rob-Vel, não tem tempo para desenvolver a sua criação. É feito prisioneiro pelos alemães em 1940 e será Jijé (1914-1980) a assegurar a obra durante cerca de um ano. Rob-Vel ainda dá vida a Spirou entre 1941 e 1943, mas neste último ano decide vender os direitos da banda desenhada à Dupuis.
Até 1946 é Jijé quem, de novo, alimenta a série, mas um irreprimível desejo de correr mundo leva-o a pedir ao jovem Franquin (1924-1997) que o substitua. Assim acontece e a primeira aventura de Spirou desenhada por Franquin vê a luz do dia em “L’Almanach Spirou 1947”, distribuído em Dezembro de 1946. Inicia-se deste modo a “idade de ouro” de Spirou, em tudo tributária da fabulosa criatividade e perfeccionismo de André Franquin.
Não tendo criado a figura de Spirou nem o seu inseparável esquilo Spip, foi Franquin quem, todavia, levou a série ao máximo expoente criativo, caracterizado põe uma ironia total e um humor sem fronteiras num registo que continua a ser o da pura aventura.
Quatro décadas de aventuras loucas
Jijé já tinha dado ao herói um companheiro, o colérico jornalista Fantásio, mas a galeria de personagens seria consideravelmente enriquecida a partir de 1951, quando Franquin agarrou na banda desenhada com as duas mãos. A ele se devem as fabulosas figuras de Pacôme Hégésippe Adélard Ladislas de Champignac, conde e micólogo; o vilão Zantáfio, primo de Fantásio ambicioso e sem escrúpulos; Zorglub, megalómano e ignóbil criminoso; Seccotine, enérgica e ambiciosa repórter que deixa frequentemente Fantásio à beira de um ataque de nervos; e, “the last but not the least”, o inefável Marsupilami – uma adorável criatura de pelo amarelo e bolas pretas com uma temível cauda de vários metros – que Spirou e Fantásio capturam na floresta tropical no ano de 1952.
Num punhado de aventuras, Franquin consegue criar um universo muito coerente, onde não falta uma decoração de interiores que o crítico Claude Moliterni define como “em estilo ‘átomo’”, arquitecturas futuristas e invenções como a “turbotracção”, que aplica na construção do turbomóvel em que se deslocam os dois heróis.
Que tudo isto tenha saído da fértil imaginação de um homem que passava por frequentes ciclos depressivos é algo que dá que pensar. “Nasci numa família onde não havia grande sentido de humor”, afirmou Franquin certo dia. “Eu tinha um enorme desejo de rir e poderia comprá-lo e drogar-me com ele se isso fosse possível”. Vingou-se em criações como esta e outras – Modeste et Pompom (1955), Gaston Lagaffe (1957) e, já na fase final da sua vida, as Idées Noires (1981-84), simultaneamente apavorantes e divertidas.
Mas tudo tem um tempo e, em 1968, Franquin já não suportava Spirou e os seus parceiros. Passa o testemunho a Jean-Claude Fournier, guardando para si o Marsupilami.
A dupla Nic-Cauvin, Yves Chaland e a dupla Janry-Tome (que, entretanto, inventaram as aventuras de Spirou enquanto criança) deram, sucessivamente, vida às aventuras de Spirou e companheiros nas últimas quatro décadas, com um interesse e qualidade que conheceram altos e baixos, mas sempre com um assinalável sucesso de vendas.
Quase a fazer 70 anos de existência, a série reflecte bem o espírito dos tempos que atravessa, em especial o período do pós-Segunda Guerra Mundial, marcado pelo esforço de industrialização, crescimento económico e construção da sociedade de consumo.
Com a entrada no século XXI, o esforço de renovação da série não abrandou e uma nova dupla (Munuera-Morvan) pegou na série em 2004, revitalizando graficamente os personagens e explorando áreas temáticas mais próximas do universo de interesses dos novos (e jovens) leitores. Em 2006, novo passo foi dado com a criação da série paralela “Uma Aventura de Spirou e Fantásio”, em que diferentes autores têm a oportunidade de contar com mais liberdade uma história única de um dos heróis que mais marcaram a BD franco-belga durante o século XX. |