A Euforia Perpétua
Pascal Bruckner

A Euforia Perpétua. Na sociedade contemporânea a felicidade tornou-se um dever. Quem não entra na corrida por ser feliz é descriminado, é um “cinzentão”, um “chato”, um inadaptado, alguém que desperdiça a vida, um looser (para usar um anglicismo muito na voga e que bem reflecte o actual estado de coisas). A felicidade tornou-se na ideologia dominante. Dizer que não somos felizes, ou que não nos estamos a esforçar nesse sentido, é cometer a maior das heresias: “se não és feliz é porque não queres”.
Como a felicidade entrou neste horizonte ideológico e, como qualquer ideologia, se converteu numa espécie de cegueira é o tema deste livro de Pascal Bruckner, filósofo e escritor francês, autor de diversas obras sobre aspectos vitais da existência humana.

Dever de ser feliz. A existência não dispensa a dor e o sofrimento. Todo o crescimento faz sofrer, toda a realização exige sacrifício. A Idade Média, mal ou bem, aprendeu a viver com as diversas dores da existência. A felicidade estava erradicada e era uma promessa de realização num mundo que tinha de ser conquistado pela passagem terrena. É com o Iluminismo que a noção de felicidade se torna no elemento chave da nossa existência. O direito a ser feliz, que surge consagrado na Constituição americana, passa pelo crivo da burguesia e transforma-se no “dever de ser feliz”. E esse dever desloca a felicidade do seu plano contigente para o recolocar no plano da obrigatoriedade.
Neste sentido, o contributo da burguesia em ascensão no século XIX, com a sua lógica de acumulação de capitais e de rotatividade do consumo, deu o contributo definitivo, tornando a felicidade no cumprimento de um destino. A burguesia acaba com as outras duas classes dominantes do Antigo Regime, o soldado e o santo. Quer um quer outro realizavam-se pela abnegação e pelo sofrimento. A burguesia acaba simplesmente com o sofrimento e deixa o campo livre à idealização da felicidade.
Essa obrigação de ser feliz alcança o seu máximo expoente no século XX, sobretudo nos anos sessenta, quando os gritos pela felicidade se equivalem aos gritos de ordem contra o tédio e o aborrecimento: “não queremos um mundo em que a garantia de não morrer de fome não se transforme na certeza de morrer de tédio”, gritavam os estudantes de Maio de 68.

Felicidade instantânea. Ser feliz passa a ser uma actividade constante e imparável e pode traduzir-se em dinheiro, consumo, saúde a qualquer preço, sexo, culto do corpo único, vida longa e duradoura. E passa sobretudo por evitar a dor e o sofrimento. É assim que o médico se torna no novo curandeiro da tribo, do qual se exige que nos devolva o estado arquetípico de sermos felizes, seja na ponta do bisturi, dando-nos o corpo social ao qual temos direito, seja pela administração de novas e milagreiras poções como o Prozac ou o Viagra. As farmacêuticas têm a obrigação de encontrar novos e diversos produtos legítimos (leia-se legais) que parem o sofrimento.
Foi esta sociedade que fez das indústrias de entretenimento (os media incluídos) as mais poderosas do mundo. A elas não só lhes exigimos que nos distraiam da dor da existência, mas que também nos dêem os 15 minutos de fama a que temos direito.
Em vinte ou trinta anos criou-se o paradoxo moderno: somos infelizes por não sermos felizes. A obrigatoriedade de ser feliz obriga a lançar mão de tudo o que possa trazer felicidade instantânea, através da alimentação de um autoconvencimento permanente. Os sintomas são as inúmeras práticas e ofertas que vão das filosofias orientais (como o ioga e o tai-chi) aos livros de auto-ajuda e de pensamento positivo, passando ainda pela criação de um “esperanto espiritual”, como define o autor, que supostamente colocará o indivíduo na senda da felicidade automática.

A ironia da felicidade. Não se pense que a obra de Bruckner é uma apologia do pessimismo e do sofrimento. Antes pelo contrário. Esta busca incessante e neurótica pela felicidade é, acima de tudo, a primeira condição para não se ser feliz e perder o contacto com a realidade. Trata-se de uma pretensão megalómana que anula o princípio da contingência da felicidade. Tal como os antigos já tinham intuído, a felicidade vai e vem. Se vier melhor, mas trata-se tão somente de um facto da vida, tal como a morte e o sofrimento.
O extraordinário é que a felicidade teima em surgir no meio da infelicidade de tantos outros. São como o prazer da senhora Verdurin, descrita por Proust e que Bruckner cita, que lê nos jornais a terrível catástrofe do paquete Lusitânia e mesmo assim não se impede de degustar o seu precioso croissant matinal. Hipocrisia? Não, humanidade, diz o autor. É esta a terrível ironia da felicidade: surge sempre na altura que menos convém e é indiferente ao estado dos outros.
Aristóteles dizia que só perto da morte poderíamos dizer, ao olharmos para trás, se a nossa vida tinha sido feliz. Isto porque a vida não se coaduna com planos e destinos. Na maior parte das vezes é no fracasso desses planos, qual Colombo que falha as Índias ao descobrir as Américas, que surge a felicidade. Mas gostamos de acreditar que Colombo foi feliz com o seu fracasso e com o contributo que deu à humanidade.

O AUTOR

Pascal Bruckner nasceu em 1948 em Paris. Mestre em Filosofia e doutorado em Letras, foi professor convidado na Universidade de San Diego, Califórnia (1986), e na Universidade de Nova Iorque (1987–1995). Autor de uma vasta obra de ficção e ensaio, escreveu, em colaboração com Alain Finkielkraut, um dos livros charneira da década de 70: A Nova Desordem Amorosa (1977). Em 1995 ganhou o Prémio Médicis de ensaio com A Tentação da Inocência; dois anos mais tarde, o romance Ladrões de Beleza valeu-lhe o Prémio Renaudot. Lua de mel, Lua de fel (1981), adaptado ao cinema por Roman Polanski, é um dos seus romances mais conhecidos. Nos seus ensaios pratica um estilo rebelde e inconformista, situandose sempre em contracorrente e rejeitando sempre as dualidades maniqueístas que ciclicamente as sociedades procuram impor.