"1984"
na pop
Por Pedro Magalhães
David Bowie, Robert Fripp e os Eurythmics
são alguns dos famosos que transportaram "1984"
da literatura para a música pop. Nenhum deles, porém,
explorou tão a fundo a casa como Hugh Hopper, ex-baixista
dos Soft Machine.
A casa mais vigiada do país é,
acreditem, a nossa. Quanto ao "Big Brother dos Famosos",
teve na pop alguns dos seus inquilinos. George Orwell, como
Aldous Huxley, Michael Moorcock ou Philip K. Dick, influenciou,
directa ou indirectamente, a cultura pop na sua vertente mais
visionária. Mas se, sobretudo os dois últimos,
convidavam à alucinação, ao onirismo
e à utopia, elementos que o psicadelismo e o rock progressivo
exploraram até à exaustão, já
Huxley (que ainda incorporava no seu "Admirável
Mundo Novo" uma realidade alternativa induzida pela droga)
e, principalmente Orwell, no seu "1984", projectavam
o futuro com as cores negras da anti-utopia e do totalitarismo.
É necessário ser-se duro, ou
delirantemente lúcido, para construir boa música
inspirada neste universo de terror e claustrofobia, mesmo
sem Teresa Guilherme estar presente. Os Progressivos, já
na sua fase tardia, foram lá, mas sem grande sucesso.
Os "1984" de Rick Wakeman (teclista dos Strawbs,
antes de se notabilizar nos Yes e compor a solo as suas próprias
obras conceptuais baseadas nas seis mulheres de Henrique VIII,
na "Viagem ao Centro da Terra" de Júlio Verne,
no mito do Rei Artur ou nos Jogos Olímpicos de Inverno...)
e de Anthony Phillips (guitarrista dos Genesis, antes do seu
lugar ser ocupado por Steve Hackett, e autor a solo de uma
vasta discografia de onde se destacam os álbuns "The
Geese and the Ghost" e "Slow Dance"), comprovam,
entre outras lacunas, a ausência do que poderíamos
designar por "espírito orwelliano", a dimensão
profética e o ultra-realismo que tornam a leitura do
livro numa afogamento até ao grau zero do sonho e da
liberdade. Ainda que Phillips tenha posto na capa a terrífica
gaiola de ratos que no livro é a personificação
do horror e dos medos mais profundos que cada um transporta,
a música, editada em 1992, é uma fusão
mecanicista entre uma personalidade mal refeita das fábulas
genesianas e a pop electrónica, sequenciada sem grande
imaginação.
A década de 80 foi bem aproveitada pelos
Eurythmics que, em pleno ano do Grande Irmão orwelliano,
gravaram o seu "1984 (For the Love of Big Brother)".
Vivia-se a época cinzenta do pós-industrialismo
e da "electronic body music" que pareciam dar razão
aos funcionários dos ministérios da "paz",
da "verdade" e do "amor"... Mas apesar
do azul de aço dos olhos, os cabelos louros e a voz
"soul" de Annie Lennox eram uma traição
ao pesadelo. "Sweet Dreams are Made of This". Sem
dúvida, não há como escapar à
ironia deste outro título dos Eurythmics. Mas esse
tempo de milícias sem sonhos pertencia então
aos Front 242, Laibach ou Test Dept.
Coisa mais séria e musicalmente relevante,
encontramo-la não na pop mainstream mas no quarto gelado
de dois grandes irmãos, Robert Fripp e David Bowie,
que podemos ouvir juntos em dois álbuns deste último,
"Heroes" e "Scary Monsters (and Super Creeps)".
Fripp, um dos maiores autoritários e luciferinos criadores
do rock contemporâneo, sentiu-se como tubarão
em águas ensanguentadas, ao exercer a sua veia de guru
em "Let the Power Fall", álbum de 1981, em
que as suas "frippertronics" anunciam em cinco etapas
(começando em "1984" e terminando em "1988")
a chegada da idade do gelo. Bowie, sempre mais teatral, dez
anos antes da data "fatídica", povoou o seu
álbum de 1974, "Diamond Dogs", de fúria,
electricidade e mutações, encenando a reclusão,
mas também a revolta e o espectáculo, no circo
do "rock 'n' roll".
Falta falar da obra-prima gravada por um músico
tão obscuro como fascinante: Hugh Hopper, baixista
dos Soft Machine e, até hoje, discreto inseminador
do melhor jazz de fusão feito na Grã-Bretanha
nas últimas três décadas. O álbum
intitula-se "1984" e foi editado originalmente em
1972, estando actualmente disponível em CD com o selo
Cuneiform.
Figura proeminente do movimento de Canterbury
(fez parte da banda seminal, Wilde Flowers), Hopper não
poderia ter-se afastado mais dos campos relvados e dos surrealistas
chás das cinco (suspeita-se que de haxixe...) que eram
timbre deste sub-género do Progressivo, do que se afastou
em "1984". Influenciado pelo minimalista Terry Riley
(nunca será demais salientar a importância que
teve para o rock mais experimental uma obra como "A Rainbow
in Curved Air"), pelas "tape collages" do homem
do Gong, Daevid Allen (nessa época envolvido na manipulação
de fitas com a música de Ornette Coleman e as vozes
de Ferlinghetti e William Burroughs) e pelo radicalismo revolucionário
de "Third" dos Soft Machine, Hopper conseguiu criar
o seu próprio mundo de sombras, tão ou mais
assustador que o de Orwell.
Com John Marshall (bateria), Pye Hastings (ilustre
da Caravan de canterbury, na guitarra), Lol Coxill (um dos
maiores excêntricos do jazz inglês, no sax soprano),
Gary Windo (outro tresloucado do sax, neste caso tenor, já
desaparecido, personagem inquieta que trouxe para o rock o
grito do "free"), Malcolm Griffiths e Nick Evans
(ambos eternos "session men" em permanente "deambilação"
entre o jazz e o rock, no trombone), Hopper ilumina com uma
lanterna furtiva os corredores de "Miniluv", "Minipax",
"Minitrue" e "Miniplenty". O baixo eléctrico
explode em graves onde a distorsão é levada
ao limite, "loops" sem saída são mordidos
pela serra eléctrica do free jazz. Imaginem o manicómio
onde o espírito de Robert Wyatt se refugiou em "Rock
Bottom". Desçam as escadas. O "1984"
de Hugh Hopper desenrola-se nas caves desse manicómio,
nas salas secretas onde se injectam estranhos soros e se corta
o cérebro dos doentes aos bocadinhos.
"Guerra é paz. Liberdade
é escravidão. Ignorância é força"
são, na obra de Orwell, os três lemas do Ministério
da Verdade. Hugh Hopper pronunciou-os ao contrário.
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